(333)_A PEQUENA BAILARINA (Ediêney Silva, 1985)_#127# [Literatura]




 

EDIÊNEY SILVA


A Pequena Bailarina


Março de 1985

Feira de Santana — BA

 

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Este livro é carinhosamente dedicado aos meus familiares, em especial ao mano Carlos, que embora em país distante, muito nos tem ajudado espiritualmente.


Ao Sr. José Givaldo, que tornou possível a publicação deste livro, o meu mais profundo agradecimento.


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APRESENTAÇÃO

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Vale a pena sonhar. Principalmente quando os sonhos são bons e belos. A ideia de escrever um livro é um sonho bom, lindo. Por isso, o esforço da nossa jovem escritora Ediêney Silva merece não só o meu mais caloroso aplauso, mas os aplausos de todos nós, aqueles que sonhamos com uma vida mais digna e mais justa.

A Pequena Bailarina é um desses sonhos de quem se joga no caminho de escrever. É um pequeno mas audacioso passo em direção do futuro. Todo começo é assim - e sempre traz junto a esperança de chegar mais perto do coração. Seria injusto se criticasse a ideia da autora (uma jovem talentosa, que merece todo nosso incentivo).

E fico mais com a mensagem do jornalista... que o livro revela tão capaz de compreender a vontade da jovem..., cujo desejo é transformar-se numa grande bailarina. Acho que é esse o desejo de Ediêney! Aperfeiçoar-se, cada vez mais - e isso requer muito estudo e dedicação. E não serei eu, aqui, a apresentá-la nesse seu primeiro trabalho, a dar uma de intransigente, como a personagem Sânia. Acredito no potencial de Ediêney Silva. Por isso lhe dou boas vindas para o mundo das letras.

Rosalvo E. S. Júnior - poeta e jornalista

Salvador, maio de 1985.


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I — CAPÍTULO


DESENLACE



Sentada à janela do quarto de dormir, Lucy contemplava as estrelas tentando afugentar a tristeza que sentia, para não mergulhar em desalento. Seu pai achava—se doente, e sua mãe — d. Sânia — não tinha dinheiro para comprar os remédios receitados. Fatos que sempre levam à uma situação angustiante.


O vento fustigava os cabelos de Lucy, jogando-os no rosto; suas mãozinhas tirava-os do rosto e atirava-os para trás. Pouco depois, d. Sânia entra no quarto da menina. Viam-se nos olhos um rubor; dos lábios ouviam-se murmúrios. E alarmou!


— Lucy, minha filha! Seu pai piorou. Vá à casa de d. Laura e diga-lhe para vir aqui.


Presa de instantâneo temor, Lucy, que está sempre pronta para chorar, indagou!


— O papai deve estar abatido. Mamãe, ele passa mal? Poderá morrer? — e desatou a chorar.


— Ora! Ora! Nada disso, minha filha! Ele não está bem; mas não está assim tão mal. Não se aflija. Vá fazer o que mandei querida.


A menina sai apressada. A mãe chega à janela, olha para o céu e faz uma oração, tendo os olhos a soltar lágrimas! — "Senhor, nós Vos adoramos. Amparai-nos“.


Fazia muitos meses que d. Sânia lutava com a doença do marido. Estava inválido. Seu estado inspirava cuidados. De mal a pior, estava de cama aproximadamente nove meses. Levara uma queda terrível quando ajudava arar a terra: escorregou e por pouco não tombou no precipício. Por isso, permanecia na cama por muito tempo, sempre em perigo de vida. A mulher, d. Sânia, e sua filhinha de apenas oito anos, ficaram sem o suficiente recurso para atender o próprio sustento.


A noite estava muito fria. Lucy avantaja os passos para chegar depressa à casa de taipa onde d. Laura morava, distante do centro, e grita do lado de fora:


— D. Laura, mamãe está chamando! Papai piorou. venha depressa!


Vindo à janela, é d. Laura quem acode!


— Não se aflija, Lucy. Já estou indo. Espere-me aqui, até eu voltar.


Chamou o filho mais velho e foi socorrer a amiga. Suas três filhas foram incumbidas de acalmar, entreter e acomodar Lucy. Tal como foram instruídas, assim procederam.


— Não chore, L u c y. Daqui a uns dias seu pai estará bom e você se alegrará muito. Ele voltará ao trabalho e todos nós nos alegramos. — Era Luanda quem falava, a garota mais velha.


— Sim, Luanda. Mas ele deve estar passando mal.


— Lucy, a gente pode ir até a Chácara, depois que amanhecer, como fazíamos sempre. Que tal amanhã? — Era Berta, a filha do meio, quem falava.


— Eu não quero, não! O que eu quero é a saúde do papai. — E Lucy desatou a chorar.


— Lucy, não chore! Tome a minha boneca. Sempre que brincávamos com bonecas, você sempre desejou uma igual a minha. Pois agora eu a dou a você. É sua! — dizia-lhe Gina, a mais nova.


— Obrigada, Gina! Você é tão boazinha. mas não posso aceitar! Papai está tão doente e eu agora não posso pensar em brinquedos.


— Mesmo assim, é sua a bonequinha “Gita". — Continuava Gina. Guarde-a para você brincar depois que seu pai melhorar. Tá?


E assim, as três filhas de d. Laura conseguiram, afinal, acalmar, entreter e fazer Lucy sorrir; dormindo, mais tarde, com "Gita" entre os braços, no colo de Luanda. Não dormiu bem. Chegou a ter pesadelos, choros e uma noite mal vivida. Ao amanhecer o dia, tudo isso mudou e Gita desgarrou-se das braços de Lucy, que dormia bem.


Algumas horas mais tarde d. Laura entra na quarto das filhas, e vai ao seu encontro, de mansinho, para a menina não acordar.


— Como está ele, mamãe? — pergunta Luana.


— Creio que não haja mais nada para se fazer! — E balançou a cabeça negativamente aquela bondosa mãe.


— E d. Sânia? Ela está sozinha? —— quis saber Gina.


— Não. Quando saí, deixei-a com seu Aldo e d. Viana. Havia outras pessoas com ela, todas conhecidas. — E volvendo um olhar para Lucy, lamentou!


— Pobre criança! Gostava tanto do pai! E agora... — e chorou.


— Quem vai contar para Lucy, mamãe? Eu não tenho coragem. — Alertou a Bertinha, com os olhos tristes, quase chorando.


— Não lhe iremos dizer nada por enquanto, vamos esperar que ela acorde; que lhe sirvamos o café e só depois é que lhes compete levá-la para casa. — Decidiu d. Laura.


— Mas mãezinha, ela não vai aceitar nada agora, do jeito que está! Eu não acredito! — advertiu Luana.


— Sânia me disse que estão sem comer desde ontem! — Lembrou d. Laura e completou!


— Pobrezinhas! O que vai ser delas agora? Como têm parentes na cidade, é bem provável irem para lá.


Teodoro Duarte faleceu ao amanhecer. O enterro ocorreria às 17:30 hs, seguindo pelos estreitos caminhos do bosque, em direção ao cemitério local. Na hora aprazada o pequeno agrupamento de pessoas acercou-se do féretro; formou-se um cortejo e seguiu em marcha lenta ao local de repouso dos mortos. Lucy e a mãe, em prantos, seguiram atrás com seus corações dilacerados pela dor, esta saudade eterna. O defunto desceu à terra fria. E todos disseram:


— Paz a sua alma!


A tarde cedeu o lugar a noite. E esta pareceu-lhes a mais escura, feia e lúgubre que já viram.



* * *



II — CAPÍTULO


SONHOS



Agarrando-se fortemente à boneca — uma “pequena bailarina" — Lucy caminhava a passos lentos, desolada, de volta à casa de dona Laura. Com ela voltavam também as três irmãs, suas amigas, Luanda, Berta e Gina. Ao chegarem, que solidão!


Lucy estava com os olhos vermelhos de chorar. Já não se via a cor verde de seus olhinhos tão lindos. Naquela hora, mal se abriam para enxergarem o dia. Para ela, tudo se acabou. Só restavam noite, escuridão, trevas. O vento, como sempre o fazia, soprava fortemente os seus cabelos, atirando-os no rosto. Ela, como sempre, não se importava em repô-los no lugar. Lembrava-se de tudo: dos campos, dos coleguinhas, dos vizinhas, da professora e da mãezinha; sobretudo do pai. Como se lembrava de tudo, recordou-se de uma frase do pai!


"Nos momentos de tristeza, deixe correr para o rosto os seus lindos cabelos lisos: isso afugentará o tédio que destrói a aleqria".


Nesse instante, duas lágrimas de saudades deslizaram pelo rosto fazendo arder aqueles olhinhos inchados. Suas pernas fraquejavam ao andar. Sentia o corpo, enquanto esbelto, enfraquecer cada vez mais. Pouco aceitava da casa de dona Laura, salvo a comida e o conforto espiritual.


Aí, na companhia das amigas. adquiriu novos hábitos. Aprendeu a espantar as saudades. Quando elas chegavam, agarrava-se com força à boneca, como se nela encontrasse um ponto de apoio.


Dez dias depois do falecimento de Teodoro, Sânia, em sua casa, dialogava com Laura a respeito da nova situação a que chegara. A amiga achou que uma viagem poderia fazer bem a quem perdeu o maior dos entes queridos: o marido. Uma cidade grande, seria o caso.


— É verdade minha amiga. Eu e Lucy decidimos morar noutra cidade. Teremos que fazer das tripas coração e tentar a sorte.


— Eu vou sentir muito a falta de vocês.


— Há muito tempo eu já estava desejando ir para uma cidade grande; Teodoro não queria.


— Deve ser bom para sua filha pois, aqui, ela continuaria relembrando-se do pai, o que a faria triste e sem ânimo, podendo até acarretar a perda do gosto pela leitura, com prejuízo dos estudos. Quando ocorrer a venda dos bens, você fará logo a mudança?


— Sim; logo que vender os móveis e a casa.


— O sr. Júlio, muito nosso conhecido, demonstra interesse pela casa. Ele tem condições de comprar com pagamento à vista. Não seria bom mandar alguém sugerir a ele a compra do seu imóvel?


— Acontece que já tenho a certeza dessa preferência. Agora, o negócio vai ser mais fácil. — Concluiu a dona da casa.


Certa vez, numa tarde fria, Lucy não foi encontrada em casa, nem davam, os vizinhos, notícia dela. Quando Gina a encontrou, estava sob uma árvore que o pai plantara para a filhinha de apenas uma semana de idade. Ali, a menina segurava a bonequinha e conversava com ela!


— Sabe "Gita", quando papai era vivo, sempre me dizia que desejava um dia ver uma bailarina de verdade. Será a coisa mais bonita deste mundo! Deve ser mesmo muito bonita, não acha Gina? Como eu também gostaria de ver uma bem de perto!


Naquele dia, com as pernas da boneca para cima. Lucy estava impossível: pegava “Gita" e rodopiava feito peão, flutuando no ar como uma pluma. Parou e voltou-se para o bosque sentindo a leve brisa bater-lhe no resto.


Certa vez, adormeceu e sonhou. Quando acordou foi contar o sonho para sua amiguinha Gina: sua confidente.


— Conta, querida!


"Eu estava num Teatro cheio de pessoas gordas e de jovens muito alegres, de meninas lindas e de mulheres bonitas. As bailarinas dançavam: de cá para lá, de lá para cá. As muitas luzes davam um belo visual. Depois juntaram-se com as outras bailarinas e dançavam de roda. Em seguida volteavam em torno de um carrinho cor de rosa, que dava brilhos. Nele se via uma linda rosa vermelha. Dentro do carro estava uma jovem bailarina usando um vestido vermelho, tendo na cabeça um laço cor de rosa. Calçava sapatilhas cor de rosas, também. A um sinal do dirigente, a bailarina saltou do carro e começou a bailar, dando voltas em torno do salão. De repente parou. Aí, saíram aplausos e mais aplausos, findo os quais ela entoou uma nova canção que impressionava. Findos os aplausos, reiniciou o canto. Ao ser entoada a última estrofe, choveram mais aplausos. Eh! Mas quando as palmas iam cessando, as luzes foram-se apagando, apagando; e a bailarina sumindo, sumindo, até desaparecer por completo. O povo inquietou-se e começou a vozeria pedindo a volta da bailarina. Ela não voltou. Pouco a pouco o coro de vozes foi diminuindo, diminuindo... até que restou uma só voz que chamava: — "Lucy"! Aí acordei".


Era Luana quem me chamava. E este foi o meu primeiro sonho lindo. Mas Luana continuou!


— O que é que você tem? Há tempo que estou chamando e não me responde! Que está sentindo?


E eu respondi na ponta da língua: 

— Não sinto nada. É que estava sonhando. Era um sonho muito lindo. Um salão joinha, bem decorado, todo brilhante, cheio de lindas bailarinas. E adivinha quem era que dançava mais bonito? E quem era que todo mundo queria ver de novo?


— Ora Lucy! Era você, certamente, pois estava sonhando. Imagine você sendo uma grande bailarina! Você! A bailarina era você? Só vendo!


— Sim, senhora! — eu disse — Era eu mesma. Por que você não acredita?


Luana notou um constrangimento no rosto de Lucy; ia chorar.


— Oh! Lucy! Desculpe-me querida. Eu não tive a intenção de constrangê-la. Desculpe-me. Tá?


— Veja bem, Gina, esta foi a historinha do meu sonho lindo.


E você, não acha que eu possa vir a ser uma  g r a n d e  bailarina? Responda com calma, Gina!


— Claro, Lucy. Eu acho que você pode e deve ser uma bailarina. Vocação é o que não lhe falta. Mas, para ser uma grande bailarina, é preciso muito estudo, dedicação e ensaio. Onde você,  aqui, vai conseguir satisfazer estes reclamos?


— Eu posso pedir a mamãe para colocar-me numa escola de dança. Nela vou estudar e praticar muito. E vencerei.


— Ora, Lucy! Todos sabem que sua mãe não é de dança nem gosta das bailarinas. Ela morria de ciúmes quando seu pai falava das bailarinas. Ela não permitirá, de jeito nenhum, sua matrícula numa escola de artes cênicas; e muito menos só de dança.


Lucy baixa a cabeça, abatida, triste, mas não vencida.


— Você tem razão, Gina! Mamãe não vai alimentar a ideia, por enquanto, de me ver bailarina.


— Pobre Lucy! Não fique assim! Eu vim convidar a futura bailarina, para ir comigo lá em nossa casa, ver a roseira. Dela, brotou uma rosa vermelha, linda de morrer. E é grande!


— Puxa, que bom, minha querida Gina! — Corre-lhe dos olhos duas lágrimas de alegria, pela relação cor e flor.


— Ora, Lucy! O que é que há? Não fique assim, já pedi.


— Sabe, Gina, o papai gostava muito de rosas vermelhas.


— Eu já sabia. Mas não fique assim, só pensando nele e nelas. É preciso conter a dor e o desejo, entende?


— Você está certa, Gina. Vamos! — E volvendo-se para a boneca estendida no chão, tomou-a, fez mimo e aconchegou-a ao colo.


* * *


III _ CAPÍTULO


A PARTIDA



Duas semanas depois daquele papo, sobre o sonho, de Gina e Lucy, a viúva de Teodoro e sua filha, estavam em ponto de partirem para a cidade grande. A carroça foi atrelada ao burrinho manhoso; o mais ligeiro do lugar. A bagagem foi amarrada sobre a carroça, mas era constituída de malas e malotes; as retirantes e o cocheiro foram para os seus lugares, sendo dada a partida.


— Adeus, Lucy! — acena-lhe, Luana.


— Jamais esquecerei de vocês! — promete Berta.


— Não se esqueçam de mim! - grita-lhes, Gina.

— Adeus, d. Sânia! Adeus, Lucy! — era dona Laura que se despedia, tendo a voz embargada pela emoção.


Os olhos das retirantes já não viam as amigas e sempre tinham os olhos cheios de lágrimas. Apenas respondiam:


— Adeus, queridas!


A carroça seguia o caminho vicinal em busca da grande cidade, rangendo, sacudindo, sob o peso das saudades.


— Adeus, queridas!


Lucy deixou correr pelo rosto, duas lágrimas de saudades: uma, das amigas; a outra, do pai. Era a primeira vez que deixava aquele lindo vilarejo onde nascera e se criara, cheio de perenes recordações. Nessa ocasião já havia completado onze anos de idade; mas já sentia no peito a dor da separação da sua terra e de sua gente.


A carroça percorria o longo caminho, sacudindo, rangendo, meio grogue, puxada pelo burrinho manhoso mas ligeiro. Atravessavam várzeas, campos e prados; fazendas, sítios e chácaras; pastagens e vilarejos, povoados e fazendas-comunidades.


Lucy não imaginava que fosse tão longe a cidade!


Ao meio-dia pararam numa sombra. O pessoal tomou uma refeição. O burrinho comeu rapadura. Logo depois, a retomada da gigantesca aventura. O tempo passava, implacável, veloz. Como era longe a cidade grande! E a carroça desengonçada engolia léguas, rangendo, sacudindo, meio grogue. O cocheiro sempre a fustigar o burrinho manhoso, mas ligeiro.


Lucy sentiu vontade de gritar, de parar, de voltar. Teve uma crise e chorou. Sua mãe repreendeu:


— Vamos, Lucy! Pare com isso. Tudo já passou. Já não há motivos para choro! — e beijou-a, com ternura especial. Enquanto isso, a carroça se distanciava rasgando, sacudindo, meio grogue, conduzida pelo cocheiro caladão, comedido, prudente.


À tardinha houve outro lanche curtido a dois, já que o cocheiro não quis participar da refeição, preferindo café com batata, no botequim ao lado. Por sua vez, o burrinho consumia rapadura. Algum tempo depois chegaram a um arrebalde, na zona suburbana da cidade grande. O cocheiro, como sempre muito ágil, saltou na pracinha e desceu respeitosa e profissionalmente as tripulantes para tomarem um refresco. D. Sânia já antevia, e contava para Lucy, o sufoco da metrópole.


Era noite. Sânia abriu a bolsa e remexeu nos pertences em busca do endereço de um parente. A tudo Lucy estava atenta. Sempre que houvesse uma observação a fazer, a mãe tocava a filha docemente. Naquele instante alertou Lucy:


— Estamos chegando ao centro da cidade! Ai teremos que carregar as nossas coisas. — E beijou a menina pela segunda vez.


A cavalgadura sacudia docemente, deslizando pelo solo pavimentada em tipo asfáltico. E Lucy viu-se inquieta. Que seria?


Súbito, já no centro, a carroça parou. Todos saltaram e se despediram. Sânia agradeceu a boa companhia do cocheiro. Lucy, já  r e f e i t a  do susto pela súbita parada, agradeceu a Deus por terem chegado sãos e salvos, com duas palavras:


Obrigada, Senhor!



* * *



IV _ CAPÍTULO


A CHEGADA



Mãe e filha começaram a andar, com seus pertences, para uma determinada praça, conhecida muito bem, por Sânia. O peso das malas fazia com que parassem, de minuto a minuto, para economizar as forças. Já decorria um quarto de hora. De repente, apareceu-lhes um Senhor ainda jovem, mas distinto, oferecendo sua ajuda para o transporte da bagagem. A oferta foi acolhida e o gentil estranho passou a dialogar com a "madona":


— Como se chama, oh! distinta senhora? — perguntou o jovem.


— Sânia Duarte; e esta é minha filha  Lucy.


— Encantado, Madame. Meu nome é Juan.


— Este nome não me parece estranho, Senhor Juan.


— É bem provável. Para onde se dirigem, por favor?


— À casa de meu primo — Adolfo Júnior, conhece, sr. Juan?


— Sim, Senhora! É um dos sujeitos mais requintados da cidade. A mansão dele fica a dois quarteirões daqui. E como é bastante longe, vou chamar um táxi, agora! — Decidiu Juan.


— Não, não! Não, sr. Juan! Não precisa incomodar-se.


— Ora, Ora! Ora, d. Sânia, isto é um prazer. Além do mais, parecem-me, cansadas.


Juan abriu um sorriso e todas o imitaram. Foi como um balsamo: as viandantes ficaram descontraídas com o riso do rapaz, recobraram o ânimo e quedaram-se como grandes amigos. D. Sânia pegou sua mala e... quando Lucy ia tomar a sua, Juan já tinha reconsiderado o valor da viagem que iam fazer, pegou a de  L u c y, sacou os malotes e acompanhou d. Sânia que já se locomovia. Não era distante a  c a s a  de Adolfo e quando menos pensavam... Eis em frente a casa, de requinte feitio, circundada por um vasto jardim. Uma empregada sai à porta:


— Que desejam?


— Sou Sânia Duarte, prima do sr. Adolfo. Ele está?


— Sim; esperem um momento.

 

Deixando Sânia e Lucy junto ao portão, do lado de fora, a empregada mirou e remirou a visitante, bateu o portão e entrou na requintada residência do sujeito mais requintado daquela cidade. Juan, que tinha ficado a uns 10 metros do portão, estranhou o procedimento da serviçal e explodia em voz alta:


— Isso é jeito de se receber uma ilustre visita, por sinal uma parenta? — a resposta foi o silêncio.


Não demorou muito, reaparece a empregada, ainda com olhar inquiridor, e  o r d e n a!


— Podem entrar!


Sânia e Lucy entram cautelosas. Acomodado pacientemente num banco do jardim, Juan ajuntou toda a bagagem e ali ficou à espera dos acontecimentos. Enquanto isso, Sânia e Lucy, na ante-sala, esperavam o aparecimento do "primo rico". Mas quem apareceu foi o serviçal de um novo turno de trabalho, fazendo as visitantes tomar os assentos ali existentes, "até que o chefe venha atendê-las", e afastou-se.


Decorrido exatamente o tempo de meia hora, eis que surge o esperado — Adolfo Júnior. Era um senhor de meia idade, bem escanhoado e bem trajado, frio e calculista, menos acolhedor e mais carrancudo.


— É Sânia? — indaga  o potentado, principiando o diálogo com a “prima pobre".


— Oi, Adolfo! — responde Sânia — Há quanto tempo não nos vemos? — e recebeu o cumprimento do parente.


— Vejo que você continua bonita como sempre, Sânia.


— E como você mudou, Adolfo! É mais distinto e acolhedor.


— A que devo a honra dessa inesperada visita?


— Oh, Adolfo! Aconteceu uma coisa terrível!...


— Eu já sabia! — invectivou o aramudo — Sempre que acontece um mal evento, você vem me implorar alguma coisa. Não é?


— Eu não vim buscar nada, mas trazer...


— E o que a traz aqui? — interrompeu Adolfo.


— Esse assunto só podemos conversar em outro lugar, ou melhor dizendo, em outra parte da casa, com mais reserva.


Não adianta, Sânia! Eu já cansei de ser o seu benfeitor. Você sempre me usou com o seu charme, agora chega. Quando você se casou com aquele miolo-mole, eu a odiei por isso! E agora a vejo aqui... Você continua a mesma... — Foi um desabafo de Adolfo.


— Oh! Adolfo! Você ainda não sabe porque estamos aqui, e já vem com suas invectívas...


— E nem quero saber! Já cansei dos seus joguinhos! E me dê licença, pois tenho muito o que fazer! — dito isto, levantou e afastou-se sem cumprimento, sem olhar para trás, sem um gesto de homem.


Lucy escutara toda a conversa. Estava horrorizada! A mãe não disse mais nada, estava petrificada. Passadas alguns instantes, reaparece o empregado para conduzir mãe e filha ao portão de saída. Pobres criaturas! Sânia, evidentemente arrasada, encontrou forças para o primeiro apelo direto ao nobre cavalheiro guardador de sua generosa bagagem:


— Juan! Ajude-me! Eu não sei o que fazer! — e caiu em pranto.


— D. Sânia, não fique assim, ó Senhora! Vamos para a minha casa, vamos descansar e repousar. Ali há lugar para todos! — era Juan quem chamava, solícito, amável.


E dito isto, atirou-se à bagagem: içou ao ombro o que poude e volveu-se para a "estrada", aguardando a "ordem“ de partida. Lucy o acompanha, toma a sua sacolinha e outros pertences, lança um último olhar àquela mansão e coloca-se ao lado do amigo e argumenta, como pessoa adulta:


— D. Laura conhecia o tio Adolfo. Falava dele dizendo ser uma pessoa maravilhosa. Quando ela souber o que aconteceu aqui agora, qual será daqui para a frente o seu conceito sobre este homem?


A essa altura dos acontecimentos, d. Sânia já de pé, tomou o que ela chamava "objeto pessoal" e veio reunir-se aos dois entes solidários à  sua dor. Nesse instante saiu a voz de comando:


— Vamos, Lucy! Vamos, d. Sânia! — era Juan quem dava o primeiro passo buscando o centro da praça ali existente. Mãe e filha o acompanham.


Pela greta de uma janela o desalmado Adolfo — "o tio rico“ — vê a cena de partida e a pressa de  L u c y  afastando-se com uma sacolinha cor de rosa. O rapaz, a mulher e a menina, seguiam em fila indiana, em passos cadenciados, sem nenhum gesto, humildemente. A visão do conjunto levou Adolfo a sentir um leve ressentimento, longe ainda dos seus hábitos. Tanto é assim que desceu até o arrependimento por tão reprovável proceder. Logo depois reagiu, chamou os serviçais e, mudando totalmente de pensar, falou-lhes:


— Vêem aquela mulher que atinge o fim da praça? É Sânia. Ela sempre fora uma mulher bonita, ambiciosa e segura de si. Mas é orgulhosa e jamais me perdoará lhe ter negado ajuda material. Quando moça, era encantadora. Sabia trajar, o que a tornava agradável a vista de qualquer homem. Sabendo-me caído de amor, explorava-me como podia, inclusive negando-me o seu amor. Entanto, guardei na lembrança toda a sua vida, desde que a conheci. A primeira vez que a vi, era meninota e a mulher mais linda do mundo! — parou e olhou bem nos olhos dos expectadores vendo nos seus olhares um como que desmentido às suas "verdades". E continuou!


— Seus grandes olhos verdes, seus cabelos encaracolados, suas boas maneiras de agir e comportar, encantavam-me de verdade. Mas era orgulhosa, e deve estar sofrendo por isso. Agora parece que mudara muito o seu moral. Creio que alguma coisa a tornou diferente. Já não é mais a Sânia brincalhona; mas, exploradora. Tornou-se nervosa. Quem sabe se a vida numa vilota não lhe ensinara o bom caminho de viver? É evidente que sua ambição pessoal chegou ao fim. Talvez a vida no campo não lhe tenha sido boa! — suspendeu a cabeça e vasculhou os olhares, que também estavam voltados para os pés, como se a rebaterem semelhante palavrório. Voltou à carga:


— Sânia tornara-se uma mulher frágil. No dia que escolheu Teodoro, seu amigo de infância, para esposo, trancou-se no quarto e dispensou as visitas. Mas o meu coração despedaçou-se. Agora, é como se estivesse ouvindo-a dizer:


"Você prometeu que jamais perdoaria Teodoro; eu é que jamais perdoarei um canalha como você. Teodoro foi seu melhor amigo e eu agora sou sua maior algoz". E voltando a si, do devaneio, diz:


— Fui traído por um sujeito calmo e tímido.


Uma criada aparece e anuncia estar a porta outra visita.



* * *



V — CAPÍTULO


ACOLHIDA



Chegaram à residência de Juan. A casa não era grande, mas acolhedora. As paredes estavam cheias de tanques e quadros grandes e pequenos; noutra parte revelavam aves e animais. No lado oposto estavam campos, sítios e herdades, mas nas paredes centrais, foram pintados recém-nascidos, crianças e adolescentes. Em destaque, um pequeno quadro mostrava, num rosto de mulher, uma fisionomia triste, porém o realce estava na moldura.


Sânia ficou abismada admirando a decoração. Chamando a atenção às recém-chegantes, Juan recolheu os seus pertences e passou a mostrar-lhes a casa:


— Bem; não é grande coisa, mas acho que poderá abrigar a todos nós, até que encontrem um lugar melhor para morar.


— Sr. Juan! — é Sânia quem quebra o silêncio que se formou — todos estes quadros foram pintados pelo sr.?


— Fui eu quem os pintou. Sabem? Eu também sou jornalista. Mas nas horas vagas gosto de pintar. O meu sonho sempre foi a pintura. Em menor dimensão, também faço desenho comercial e mecânico. Raramente faço outros tipos, sempre retratando o belo, salvo aqueles tanques que foram abortivos...


— Sr. JUAN! — era Lucy com a palavra — É muito bonito sacrificar-se por um ideal. O meu destaque é para este quadro — e indicou-o — que contém a bela paisagem de um campo mostrando pássaros e corças. Aquilo me traz recordações da infância vivida nos campos, onde muitas vezes brincava de esconder e de correr.


— Recordar é viver! — diz o poeta — Agora recorde que as belas criaturas que Deus mandou. certamente, estão cansadas; precisam repousar, mas antes vou providenciar alguma coisa para comerem e depois então é só recolherem aos seus aposentos e... um bom sono. Esperem um instantinho apenas.


A noite ia alta. Sânia, sentindo-se cansada, estendeu-se no sofá, enquanto Lucy aprecia os quadros que lhe chamaram a atenção. Enquanto as recém-chegadas utilizavam o banheiro, Juan preparou-lhes uma farta e suculenta refeição, da qual também se serviu, contente por receber elogios especiais e não convencionais. Após tomado o alimento, à mãe e filha, foi entregue um quarto de dormir para cada uma, com serviço e mobiliário completo. O de Sânia, além de amplo e confortante, continha no centro uma cama de casal. O de Lucy, embora pequeno, não deixava de ser acolhedor.


— Deixem-se levar por um sono tranquilo e reparador. E muito boa noite! — expressou o anfitrião.


As mulheres, estafadas que estavam da viagem, logo que repousaram, dormiram. O dia movimentado que levaram, àquelas horas, só podiam estar cansadas e fadigadas. Por sua vez, nosso rapaz entregou-se ao Criador, pedindo também a proteção para suas amigas. Antes de tomar o leito. passou em revista os pormenores programados para a conquista das amigas, desde a amável oferta de serviço, antes e depois do encontro com o "primo rico“, sem omitir o encontro após deixarem o transporte, até a comida que lhes serviu, sem omitir também a limpeza da casa e o serviço do camareiro, tudo feito com naturalidade, de tal modo que não deixava suspeita de ser obra do acaso. Daí, a oração de agradecimento do nosso herói, estendendo os seus frutos àquela mãe e àquela filha. Em verdade o moço conhecia e amava perdidamente aquela viúva.


Era manhã cedo. Enquanto as amigas tomavam aquele banho, Juan preparou-lhes o café matinal. Sânia dirigiu-se à cozinha.


— Oi, J u a n!


— Bom dia d. Sânia! Dormiu bem? — saudou-lhe o moço iniciando a comunicação.


— Otimamente, sr. Juan! Como me sinto bem esta manhã!


— Lucy não acordou ainda?


— Já, sim. É que não terminou o seu banho.


— Ótimo! Vai lhe fazer muito bem.


Sânia abaixou um pouco a cabeça, esboçou e conteve um sorriso, ao notar o avental de Juan, que lhe descia até os pés.


— Eu devo estar mesmo muito engraçado, não acha, Senhora?


Sânia notara um leve constrangimento estampado no rosto do rapaz, e antecipou suas escusas!


— Desculpe-me, sr. Juan, eu devo ter falado alguma coisa que não devia.


— Qual nada! Não se preocupe. Há cinco anos que eu vivo sozinho. Aprendi e acostumei-me com o trabalho.


— Como, Senhor? Está há cinco anos nessa faina?


— É, senhora Sânia! Há justamente cinco anos que perdi minha esposa. Chamava-se Margareth. Não deixou filhos. Que mulher adorável.


— Naturalmente que o Sr. a amava muito. Eu sinto muito, Sr. 


— Obrigado. Deixemos estes assuntos para depois.


— Também, obrigada.


— Queira, por favor, chamar a Lucy. Já lhes vou servir o café. E ponham-se à mesa.


— Sim, Senhor! Já vou apressar Lucy.



* * *



VI — CAPÍTULO


PLANOS



Juan fora pintar um novo quadro. Sânia deitara-se para um pequeno repouso. E Lucy saiu a bisbilhotar em volta da casa. Os habitantes dessa moradia haviam tomado cada qual um destino. Mas a atenção de todos concentrava-se na guarda e defesa do patrimônio comum — a casa e todos os seus pertences.


Pouco depois chega Lucy ao atelier do pintor, seguindo-se o gracioso e amável diálogo registrado a seguir!


— Oi, Juan! O que está pintando?


— Oi! Lucy! Tudo bem? O que você gostaria que eu pintasse?


— Noto que você ainda não pintou nada. Por quê?


— Estava diante do quadro pensando, arquitetando idéias e apagando algo que não saiu do pleno agrado.


— Eu posso falar ou pedir o que quiser?


— Ora! Pode, sim.


— Então eu gostaria que você desenhasse uma dançarina. Tá? 


— Claro! Mas por que uma bailarina?


— É porque... porque gosto muito das bailarinas. Papai gostava também. Mamãe é que não se ligava, bicho!


— Sendo assim, vou desenhar sua bailarina. Como você gostaria que ela fosse?


— Uma dançarina bailando. Que ela estivesse num salão dentro de um carrinho cor de rosa; que ela estivesse num traje típico cor de rosa, com um laço vermelho na cabeça; e nos pés, sapatilhas também vermelhas. Entende? .


— Ora, ora! Isso está parecendo um sonho. Onde foi que você viu ou sonhou tudo isso?


— Em canto nenhum. Fui eu mesma que inventei. Sacou?


— Inventou o que, Lucy? — era uma voz de mulher, pondo fim ao diálogo .


A voz era de sua mãe que, tendo entrado no quarto, ouvira o que sua filha dissera.


— Ela estava contando parte de um sonho que tivera, d. Sânia!


— Tolices! o pai transmitiu-lhe as bobagens que falava! — Interrompe Sânia, um pouco irritada.


— Não são bobagens, mamãe! — diz Lucy quase a chorar.


— Bobagens, sim! E não discuta comigo, ouviu? — revida d. Sânia já mais alterada.


— Vamos com calma, d. Sânia!... — interrompe Juan.Não há motivos para discussões!


— Oh! Desculpe-me, sr. Juan! Não tive a intenção...


— Se entendi bem, parece que não gosta das coisas de Teatro, balé, etc. Não é Senhora?


— Sim! Meu esposo enchia-me a cabeça com essas coisas, em vão; e encheu também a cabecinha da menina. Viveu todo o tempo comentando as excelências da Arte Cênica! — arrematou ensimesmada.


— Mas o Balé é uma coisa tão bonita e natural.


— Eu não acho! Não quero minha filha metida nisso. Entende, oh! sr. Juan?


— Como a sra. sabe que ela quer ser bailarina? — riu Juan.


— O pai passou a vida falando que queria uma filha bailarina! Isto bastou para que ela, que o amava muito, fizesse a sua vontade! — arrematou Sânia.


Seguiu-se um silêncio que só foi quebrado com um soluço de Lucy. Sânia retira-se do atelier. E Juan olha para Lucy!


— Pobre menina! Como sofre com a mãezinha "cabeçuda"!


Lucy desata em pranto.


— Venha cá, Lucy. Sente-se aqui ao meu lado.


A menina obedeceu.


— Fale-me de sua terra e de seus costumes. Sim? — Beijou-a.


Com hesitação, Lucy narra-lhe os fatos mais recentes. Fala do lugar onde nasceu; dos campos onde brincou; da casa onde se criou e dos amigos que lá deixou.


Lucy sente mais vontade de chorar, com saudade do recente passado e deixa correr algumas lágrimas. Juan a conforta dizendo:


— Olhe Lucy, ser bailarina é muito bonito, mas é preciso muito treino, muita saúde e muito empenho. Antes de tudo, terá que obter permissão de sua mãe. Isso é um pequeno esboço. Prometo que vou fazer o possível para que você se firme; por outro lado, persuadirei para que sua mãe mude de opinião.


— Juan? Mamãe morria de ciúmes quando papai falava em Balé!


O rapaz fez um gesto de reprovação e procurou contornar o impasse com o seguinte argumento:


— Mas não é isso, Lucy! Concluí que sua mãe não detesta balé. O que realmente ela não gosta é das bailarinas! O ciúme era quando seu pai tocava nelas, quando dançava com elas, dando aqueles bailados, que punha em risco o coração das ciumentas. Agora que ele já não vive entre nós, não vejo motivo para impedir que sua filha siga o caminho de sua vocação artística.


Lucy ficou sem entender e meneou a cabeça fitando seu interlocutor. Então Juan lhe expôs um plano:


— Levarei Sânia ao Teatro e assistiremos, todos juntos, uma dança folclórica, um balé ou uma comédia amorosa. Acho que ela irá gostar tanto do balé que desejará revê-lo e... melhor, vai querer ver sua filha uma autêntica bailarina.


A menina ouviu tudo em silêncio, mas sem perder uma só palavra das enunciadas por Juan. O plano estava exposto. Agora é tocar para sua execução. E durante toda tarde Juan esperou o momento exato para formular o convite a Sânia. Inesperadamente Sânia foi à rua; e quando regressou já era tarde. Cada vez que Lucy se encontrava com Juan, desanimada, lançava-lhe um olhar cobrando a promessa, para que não passasse a hora de ir para a dança.


— Bem, querida, paciência! Se não puder ser desta vez será de outra. O importante é ter fé.


O "Plano" não foi levado a Sânia naquela noite. Mas na hora de dormir, Lucy foi conversar com o Chefe do Planejamento sobre o assunto. Quando a menina voltou do atelier de Juan, foi interpelada por sua mãe que ainda não tinha conciliado o sono, querendo saber porque a filha tinha ido, àquela hora, ao "gabinete" de Juan. Lucy desculpou-se dizendo que não conversavam nada de mais. Ocorreu que o amável senhor falava tão atraente, que o tempo passou e ela não tinha percebido antes. E a mãe aceitou a razão.



* * *



VII — CAPÍTULO


Equívoco




Naquela ocasião, numa manhã, à hora do café, Sânia veio conversar com Juan a respeito da hospitalidade que ele prodigalizava às suas humildes hóspedes.


— Não vejo por que estão preocupadas com isso. Eu lhes havia dito que poderiam ficar aqui o tempo que quisessem, sem nenhum dispêndio.


— Mas não temos o direito de abusar de sua generosidade, Sr. Juan! Afinal, não podemos morar com o Sr. por tempo indeterminado. O que não diriam os vizinhos?


— Han-ran! Quanto a este problema poderão dizer aos birrentos, que na certa são pessoas menos importantes, que somos parentes. Quanto a essa "generosidade", poderão dizer sem receio de errar, que não estão abusando nadinha da minha acolhida ou bondade, se assim quiserem. Eu, sim, é que estou usufruindo da companhia de tão gentis, de tão amáveis e diletantes pessoas; o que me faz um bem imenso, razão por que me sinto feliz. — Suspirou um pouco e continuou!


— Há muito tempo, oh! distinta senhora, que eu sonhava com a presença de uma criança e sua mãe nesta casa. Tudo isso me faz um bem inestimável. Entende, d. Sânia? Eu vivia sozinho ... Deus as trouxe para viverem aqui.


— Eu entendo o Sr., mas não posso compreender como, durante tanto tempo, não se decidira encher sua vida e sua casa com uma  c o m p a n h i a  legal, de que o Sr. é digno e merece.


— Mudando de assunto, desde que aqui chegaram, ainda não tiveram a oportunidade de uma caminhada para conhecerem a cidade. Lucy me disse que ainda não tinha andado pelo parque e que nunca tinha visto um Teatro por dentro. Imagine! Vamos conhecer a cidade, eu prometi a Lucy... vamos chamar Lucy... Eu prometi...


— Não se preocupe com isso, sr. Juan! Olhe não vá atrapalhar a vida que planejou. Eu creio que precisa trabalhar. 


E Sânia falava como se ninguém a ouvisse! — "Em verdade, ainda não o vi indo ao trabalho". Diante o que Juan justificou:


— Olhe, d. Sânia! Eu trabalho um dia sim, outro não; o meu trabalho não me obriga a comparecer ao Departamento de Reportagens diariamente. Eu falharía se deixasse de me comunicar com o meu Chefe. Por isso faço o meu trabalho por fora e envio à Redação, que o distribui...


— É muito bom esse seu cargo, sr. Juan! — diz Sânia sorrindo.


— Obrigado, Senhora. Não demoremos mais a sair. Presumo que teremos um dia cheio de aventuras, hoje, é claro!


— Já que me decidi a ir, espere que eu me ajeite, Sr. Juan. Aproveito para procurar um emprego, pois não posso ficar sem trabalhar. Não acha, sr. Juan?


— Se está pensando em pagar aluguel, está muitíssimo enganada! Não vou aceitar nada! — diz sorrindo Juan.


— Não pode agir assim, Senhor! Irão pensar que estamos aproveitando e abusando da sua solicitude e bondade.


— Ah! Não! Isso não! O que é isso, Senhora?


— Está bem! Mas de qualquer forma eu preciso trabalhar para ter dinheiro e poder comprar o que eu e Lucy haveremos necessitar. Aliás, eu sei fazer alguma coisa. Sou formada...


— Está bem! Se não se importar em permanecer aqui, cuidando da aparência, dos móveis, da cozinha, de minha roupa, enfim, da casa, eu lhe pagarei um bom salário!...


— O que? Se está pensando em me contratar como doméstica, está perdidamente enganado!


Era Sânia regelando o seu orgulho. Quando isto acontecia, subia à cabeça e fazia os mais absurdos protestos. Jamais se rebaixaria a tanto. Por isso acreditava, um dia, arranjar um emprego bem remunerado, mas não como doméstica. E esbravejou:


— Isso é uma ofensa para mim, sr. Juan!


— Então me desculpe, d. Sânia. Errei, ou melhor, me equivoqueí enfocando este assunto...


— Também acho.


Mais tarde, passado o equívoco, achavam-se os três entes queridos nas ruas da cidade grande, fazendo compras e se divertindo a valer.


À noite, Lucy chamou Juan à parte e conversou a respeito do "Plano". Ficou combinado que Juan acertaria com Sânia a ida ao Teatro no dia seguinte.


— Agora que me lembro. É uma pena Lucy, amanhã não haverá espetáculo! — disse Juan.


— Então, que dia irá ter espetáculo? — insiste Lucy.


— Só quando decidirem. Eu não sei.


— Oh! que pena! Quando eu for bailarina darei espetáculo pelo menos uma vez por semana.


Juan notou que na voz da menina havia certeza e segurança e assim aumentava a sua admiração por tão notável criatura de Deus. Nesse dia, por toda a noite, Juan não conseguiu conciliar o sono, refletindo no que Lucy havia dito. E monologava:


— Quanto Lucy é decidida! Apesar dos atos contrários da mãe, sustenta o desejo de um dia ainda ser bailarina.



* * *



VIII _ CAPÍTULO


COMPORTAMENTOS



— Amanhece. É um lindo dia de primavera. Sânia em ação. Levantou-se mais cedo e fez o café. Estava mais calma e mais alegre, com um grande senso de responsabilidade. Enquanto preparava o desjejum, cantarolava uma linda canção mineira.


Juan, que há pouco entrara na cozinha, ficara a escutá-1a: Sânia, sem dar pela presença do rapaz, ao seu cantar mavioso, só ria. O moço pôs-se a admirar aquela voz linda de mulher bonita. E refletia, lá com os seus botões:


— "Como é que uma mulher tao altiva e senhorial dispõe de uma vez tão linda como uma sinfonia?" Esta era a voz de Sânia.


E matutava, que matutava, mastigando os raciocínios.


Lucy entra, correndo na cozinha. Sânia assusta-se com o aparecimento intruso. O seu pânico aumenta assustadoramente ao perceber a presença de Juan. De amarela tornou-se rubra.


Recuperado a serenidade, Sânia manda delicadamente que Lucy vá lavar as mãos. Juan não gosta da perturbação de Sânia, pela queda vertical de sua inflexão de voz. Aproximando-se um pouco da matrona, vê lágrimas no seu rosto. Mas Sânia tenta disfarçar-se e não consegue; anda e desanda de um lado para o outro, parecendo buscar alguma coisa mas sem nenhuma intuição. Vai até a mesa da sala de jantar e balbucia:


— Sr. Juan! Não acho discrição a entrada de homem, em silêncio, num compartimento onde há mulheres, sem um aviso, qualquer que seja!


— Por que, Senhora? — interrompe-lhe o rapaz — A uma linda canção, entendi por minha musa, não ser bonito interrompe-la!


Há lágrimas nos olhos de Sânia, que as enxuga com o avental. Juan obtempera:


— Estou enganado ou isso são algumas lágrimas, d. Sânia?


— Foi cebola, sr. Juan, que utilizei numa fritada.


— Por que não diz a verdade? Talvez não seja muito agradável esconder cartas coisas...


— O que, por exemplo, sr. Juan?


— Esse seu espírito de aversão as coisas belas, não me convence, nem um pouco, do que me falou ontem. Antes, passei a acreditar que a Senhora agia apenas por ambição. Só pensava em si e em mais ninguém. Era egocêntrica. No seu julgar o balé deixa transparecer que o esposo que teve passou a vida inteira a falar em bailarinas, que por sinal são mulheres. E como não há instinto de compreensão racional, a sra. imaginava que podia destruir o sonho de seu esposo e de sua filha, mercê de um desarticulado ciúme!


Sânia sentiu-se, no âmago, ferida de morte e redarguiu:


— Lucy jamais iria pensar em querer ser uma “dessas"... se Teodoro não lhe tivesse inculcado o balé, em tempo de fazer a menina perder a cabeça.


— E nem sequer passa-lhe pela consciência, Oh! Senhora, que uma vocação não é feita por palavras? Lucy me contou que, antes de compreender as palavras do pai, tinha desejo de dançar. E o que mais contribuiu para o fortalecimento desse desejo, fora uma pequena bailarina de pano que vira pela primeira vez! E diz lembrar-se ainda do dia em que pedira ao pai que lhe dissesse o que significava a boneca com aquele vestido de bailarina e com aquela expressão cênica que ela desconhecia, mas que a fazia muito bonita.


— Sr. Juan! Recuso-me a acreditar que ela lhe tenha dito tudo isso! Lucy é apenas uma criança tola!


— As crianças também pensam, d. Sânia! E nesse estado de livre manifestação, têm capacidade de demonstrar o que sentem! Isto elas fazem não só por palavras, mas também por gestos!


— Ela pensa assim, agora! Quando crescer, há de esquecer todas essas bobagens.


— Por que se expressa assim, oh! Senhora? Será talvez por que esse seu irritismo por bailarina seja outra coisa? Ou estou enganado?


— Não o estou entendendo, sr. Juan! — diz Sânia num tom ameaçador, mas programado.


— Está me entendendo muito bem. Eu sei que está! 


Dito tais palavras, com um olhar ameaçador, Juan fita-a de frente, com certa indulgência, tendendo à paz. Contudo, Sânia sente-se cada vez mais perturbada e, num gesto de incontida irritação, retira-se. Juan segue-a com os olhos, até vê-la entrar no quarto e bater levemente a porta.


L u c y  chega-se até Juan. Os olhos continham uma indagação. O rapaz percebeu e viu mais naqueles olhinhos um sinal de medo.


— Você brigou com a mamãe? — pergunta a garotinha um tanto amedrontada. 


— Não! — responde claro, seguro e calmo, evitando aumentar o conflito, o nosso galante jornalista.


— Mamãe não vem tomar café?


— Eu creio que não. Disse que estava sem fome e foi descansar.


— Mas ela acordou há pouco!


— É que se sentiu cansada! — sorriu o desenhista.


— Haja luz! — é a menina sorrindo também.


Juan sorriu baixinho da ingenuidade de Lucy. Os dois tomam o café servido, calmamente, pelo homem da Imprensa, que é também desenhista e pintor. Os sucos eram de frutas naturais e os pães feitos em casa; era tudo obra de Juan. Enquanto isso, Sânia arruma-se com rigor, dando a impressão que iria sair à rua. Lucy volta a conversar com Juan, mas procura não falar do pai.


Passados alguns minutos, Sânia emerge do quarto e disse a Lucy:


— Vou sair. Não sei a hora de chegar. Procure não dar motivo de desgosto ao sr. Juan. Combinado?


E antes de lhe perguntarem aonde ia, venceu a porta e ganhou a rua. Dirigia-se a casa de uma velha amiga de há muito conhecida. O que iria fazer, só ela sabia.


No caminho deparou-se com Adolfo — “o primo rico". Ao vê-lo, sua expressão se contrai, enrubesce, tomando um ar de defesa. O parente observa o olhar da prima e procura disfarçar-se:


— Como vai, Sânia?


A parente não responde, mas fita-o acremente.


— Onde está? — insiste Adolfo — Sei que não deveria dirigir-lhe a palavra. Acontece que estou tremendamente mortificado. Pode acreditar.


Num sorriso de moa e desprezo. Sânia rebate:


— Preocupado? Mortificado? Desprezado? — ri — Ora! Mas que gracinha!

— Sei que está chateada comigo. Eu a compreendo muito bem.


— Chateada, não! Eu estou furiosa! O que fez contra a minha humilde pessoa, não se faz a ninguém. Desalmado!


— Eu sei que jamais me entenderá. Mas espero que um dia aceite as minhas escusas. Desculpe-me, Sânia!


— Qual nada, seu pedante! Espero que nunca mais nos cruzemos na estrada da vida. Saia da minha frente!


E dito isto, foi seguindo o seu caminho.


Adolfo ficou petrificado, olhando-a, até desaparecer na multidão. Sua inquietude sacudia-o como se o impelisse para a frente.


Mas sua parente não se deu por despercebida. Seguiu o seu caminho entre os transeuntes, balbuciando! "Saia da minha frente!" Ao passar por um Teatro ouve uma canção que lhe desperta reminiscências do passado. Pára por alguns instantes e põe-se a refletir. Acha-se com uma enorme vontade de entrar naguela casa de espetáculo, para ouvir melhor. Decide: "Vou entrar!" Rodeia o prédio até à entrada lateral e... Entra sem pedir licença.


Logo depara-se com um grupo de bailarinas ensaiando uma dança lenta. Fica a admirar os passos gentis daquelas jovens. Nisto, alguém lhe chama a atenção:


— Desculpe-me, Senhora! Não é meu desejo despedi-la, mas a ordem é não permitir a entrada de pessoas estranhas no salão, se é hora de ensaio, salvo com permissão.


— Sou eu que peço desculpas! “Estava distraída. O que foi mesmo que o sr. disse?


— Que não é permitido a entrada de estranhos, salvo se tem licença da Diretoria.


— Ah! Obrigada.


Sânia retira-se sem uma palavra de protesto: melancólica, triste, abatida. Também não estava aborrecida com ninguém. No entanto, alguma coisa havia naquela canção que a fez meditativa. Retrocede os passos. Atravessa a rua e segue em frente. O som da canção dolente persiste ritmada, retinindo, vibrando no seu ouvido.


Mais adiante pára em frente a uma vitrine, na qual se via um quadro lindo, lindo. Nele, o artista retratara uma bailarina sorrindo. E indagava a si mesma! "Quem seria o autor? Quem será a bailarina?". Fica estática; admirando a obra. É incrível! E dos seus  o 1 h o s  verdes, brotam duas lágrimas sentidas.


Seriam de arrependimento?



* * * 



IX — CAPÍTULO



CORAÇÃO DE OURO



Lucy e Juan parlamentavam.


— Juan, fale mais um pouco a respeito de sua mulher. Ela era bonita?


— Oh! Muito bonita!


— Mais bonita que a mamãe?


— Você já contemplou aquele retrato ali? — E aponta para um pequeno quadro, caprichadamente emoldurado, que estava num canto da sala.


— É sua mulher? — há espanto no rosto de Lucy.


— Sim! A aparência não é muito bonita, mas o seu coração era de ouro fino!


—De ouro fino, como?


— Quero dizer! muito bondosa, amável e indulgente. Estes atributos eram o que a faziam, não só bonita mesmo, mas diferente de outras mulheres. Eu a conheci num dia de chuva. Estava zangado porque a enchente havia estragado o meu passeio. Para me consolar, sabe o que disse?


— Como poderia adivinhá-lo?


— Disse-me que queria mil vezes a chuva pesada, por que toda vez que ela se vai, deixa as flores lindas e o ar saudável!


Interrompendo a Juan a lembrança da "finada", surge Sânia, de mansinho falando paulatinamente!


— Sr. Juan, desculpe-me, se lhe interrompi em alguma coisa.


Ela estava visivelmente calma, com uma tranquilidade de espírito incomum; e o seu aspecto benigno trazia conforto.


— Ah! Não! Não me interrompeu em nada.


— Muito bem, jovens! Estou faminta! vou preparar alguma coisa. Vocês também querem?


— Oh! Claro. Não é Juan? — Sorrindo, Lucy dá um beliscãozinho no amigo.


— Claro, claro! — diz Juan fitando Sânia.



* * *



X — CAPÍTULO


A BOA NOTÍCIA



Passaram-se alguns anos, decorrendo-se alguns meses.


L u c y  entrara numa escola onde fez muitos amiguinhos, dentre os quais se destacava Suzete, sua melhor amiga. No início a órfã encontrara dificuldades de adaptação que foram, bem cedo, superadas. Um fator preponderante foi, no particular, o ensino dos bons hábitos e bons costumes ministrados pelo pai. Ele tinha-na sempre ao colo e lhe prodigalizara os conhecimentos fundamentais de LER, ESCREVER E CONTAR, e os rudimentos de COMUNICAÇÃO: CIÊNCIAS E LETRAS, além de LITERATURA e POESIA.


Uma bela tarde de verão. Surge uma amiguinha:


— Lucy, sabe da boa nova? — era Suzete — Na sua escola vai haver aulas de dança, só que em horário diferente.


— Legal! — pulou Lucy, de Contente.


A menina ficara encantada com a notícia. A partir desse dia, várias noites, sonhava com os ensaios de dança dessa escola. Mas quando acordava, chorava baixinho ao pensar que sua mãe jamais a deixaria participar das aulas de dança, mesmo de sua escola.


Certa vez, eis que chega Suzete com a informação de que as matrículas para dança já iam fechar para o próximo semestre. Lucy assustara-se e saiu correndo até chegar em casa. Sua mãe estava escrevendo alguma coisa, na sala. A menina ao deparar com a mãe naquela sala, entra cabisbaixa, um tanto biruta, imaginando um jeito de convencer a mãe para que a matriculasse no curso de dança.

Mas a mamãe notando-lhe a inquietação, levantou-se e indagou preocupada!


— O que é que está havendo, minha filha? Quer alguma coisa?


— Mamãe... a senhora sabia que vai encerrar a matrícula para o curso de dança, na escola onde estudo?


— E que tem a ver isso contigo? — perguntou a mãe franzindo a testa.


— Mamãe, a Senhora deixa eu tomar, pelo menos algumas aulas? — e havia um fio de voz na fala da menina.


— Não! E você sabe porque!


— Mas, mamãe... as matrículas vão fechar-se! — a voz de Lucy sai rouca, num leve tremor.


— Não insista comigo. Lucy!


— Eu queria tanto. mamãe! — diz quase a chorar.


— Já disse que não! E me deixe trabalhar em paz! Ouviu?...


Juan chega de repente e interrompe:


— Por que trata a menina assim, d. Sânia?


— O sr. não tem o direito de me recrimínar e muito menos indagar o porquê do meu tratamento à minha própria filha! Entende?


— Não d. Sânia! Não quero me intrometer na maneira de educar sua filha. Mas fique ciente: qualquer pessoa veria como está cega. Pensa apenas em si; e nem sequer se importa com o que a filha aspira, não olha para sua vocação. A menina está sofrendo muito, muito mesmo, por causa desse seu egoísmo! Por que impedir um sonho tão bonito?


Juan retira-se da sala. Há silêncio. Sânia fica a refletir. As palavras de Juan martirizaram-lhe a cabeça. Ouve-se um baque. Era a porta que batia à saída de Juan, pela frente da casa. Lucy busca o seu quarto. Ali, num cantinho,fica a pensar, tristonha, tão sombria que dava pena vê-la.


Sânia estava meditabunda, remoendo as palavras de Juan: "A menina está sofrendo muito, muito mesmo, por causa desse seu egoísmo". Levanta-se. Segue ao quarto de  L u c y. Encontra-a cabisbaixa, a cabeça pendida para a frente. Estava sentada ao chão. E aquela cena tocou fortemente o seu coração de mãe. E refletia! "Um sonho tão bonito, por que impedí-lo?" Isso era demais! Achega-se para perto de filha e verifica que ele chora baixinho. Grita:


— Está bem! Por favor, não chore mais. E pode fazer o que quiser. Não fique mais nos cantos! Eu não aguento mais essa pacovice!... — E retira-se batendo a porta.


— Mamãe!...


Lucy levanta a cabeça, ergue-se, dá um suspiro profundo. O que foi que ela me disse? Procura lembrar-se das palavras da mãe. Não tardaram a vir-lhe à mente, ditas com ímpeto, mas frias e frias e calculadas, mas que para a menina eram animadoras! "Está bem! Pode fazer o que quiser!" Dentro de um consenso, era o consentimento materno. Dá um pulo e corre ao atelier para encontrar-se com Juan, sentado num banco, à frente do trabalho.


— Juan! A boa notícia!


— O que é que há, Lucy?


— É um começo de mudança de mamãe! — dizendo isto atira-se nos braços do rapaz — Mamãe deixou... Mamãe permitiu... Eu vou dançar, Juan!


— Como foi que ela disse?


— "Está bem! Pode fazer o que quiser!"


— Que ótimo Lucy! Como conseguiu?


— Ela entrou no meu quarto, viu-me sentada ao chão, chorando baixinho, pediu que não chorasse mais e consentiu. Estou feliz!


— O que será que a fez mudar a inticância? Quem, se não foram as minhas palavras, que levou-a a ceder? Foram palavras duras, reconheço, mas bem merecidas. Outro abraço, Lucy!


— Aconteceu a notícia! Viva Mamãe! 


E d. Sânia, através da cortina, apreciava a cena. Percebeu o jeito respeitoso como eles se abraçavam, o rapaz comportando-se como um pai. Sentiu ciúme e um leve tremor. Até aquele dia não tivera a oportunidade de vê-los em festa. Será que Lucy gosta de Juan. Quereria ela ficar com o rapaz? Tangeu os pensamento e dirigiu-se ao seu quarto. Remexe o baú e saca um velho retrato enrolado num paninho. Abraço-o enternecida!


— Perdoe-me, Teodoro! Eu falhei!


As lágrimas saltam-lhe pelo rosto abaixo, em jato, grossas, envolventes! E continuou:


— Talvez Lucy fosse mais feliz com você! Errei ao impedir-lhe a realização do único sonho — ser dançarina! Ela não seria feliz nem me perdoaria jamais a negação aos anelos do seu coraçãozinho! Por tudo isso eu to peço, Teodoro: Perdoa-me!


Ouve um toque na porta. Enxuga as lágrimas, guarda o retrato e pergunta: "Quem é?“ 


— Sou eu, d. Sânia! Posso entrar? — é Juan quem bate.


— Espere um instante! — passado aquele instante — Pronto!


Juan entra contente e diz:


— Vim agradecer, d. Sânia! Estou feliz por ter mudado de opinião, franqueando a dança a Lucy.


— Eu não aguentava mais, Juan, ver Lucy chorar pelos cantos! Espero que não me arrependa!


Estas foram as queixas; estes foram os argumentos de Sânia, incerta e ambígua, vencida pelas lágrimas. Sânia fez menção de retirar-se do quarto, mas Juan a reteve, vendo-lhe os olhos vermelhos. Os cabelos menos cuidados, dir-se-ia haver sido puxados. Mas quem haveria de fazê-lo? Fitou-a bem nos olhos e disse:


— Parece que estava chorando, se não me engano, d. Sânia?


— Claro que se engana. Apenas mexi no baú e a poeira fez os meus olhos vermelhos. Tenho alergia a poeira, entendeu?


Sim! Sim... — Juan não acredita, nem um pouco e continua — Porque não diz a verdade?


— Já disse! Agora deixe-me em paz. Tenho o que fazer!


Juan retira—se, meditativo. Mas Sânia havia percebido um riso abafado que o rapaz soltara e comentou consigo mesma em voz alta, tanto que o moço chegara a ouvir:


— Eu sei que Juan não acreditou no que eu lhe dissera. E por que ele me faz insegura? Aquele seu jeito firme de me olhar,perturba e aflige-me. Que está havendo? Parece que aquele olhar está devassando todo o meu íntimo, querendo algo indefinível. Já não posso mais mentir-lhe nada!



* * *



XI — CAPÍTULO


ESFORÇOS



Lucy entregara-se, com afinco, aos estudos. Nesse ano, todos os dias de manhã cedo, ensaiava os passos. O professor Botanivo admirava-se da menina: sua dedicação aos estudos, sua aplicação às tarefas e seu relacionamento social. Muitas vezes ia a casa de Juan conversar a respeito do desembaraço de Lucy. E ao encerrar a visita tinha sempre palavras de encômios:


— É uma menina muito esforçada, Sr. Juan. Receba os meus parabéns!


— Talvez a sra. Mãe de Lucy gostasse de ouvi-lo a respeito do assunto que o sr. tanto protesta. Por que não lhe fala, professor?


Sânia, por sua vez, não demonstrava muito interesse pelos progressos estudantis da filha: se ia bem ou mal na dança e nas provas. De vez em quando ameaçava a filha com castigos se viesse a perder os estudos normais por culpa do balé. A verdade é que Sânia não gostava de ver a filha se dedicando tanto a dança. Também não era do seu agrado ver Juan prestando maior atenção à filha, que à mãe. Por isso ficava horas a fio trancada no quarto, com os olhos cravados no retrato do esposo. Quanto a este, parecia vê-lo sorrindo. E não raro terminava seu sucessivo devaneio de modo contundente!


— Você Lucy, você Teodoro, me venceram! Conseguiram o que queriam. Estão felizes agora?


E quantas vezes Juan a surpreendia nesse transe proferindo palavras desconexas ou aparentemente sem sentido?


Por estas e outras coisas mais, o Homem da Imprensa passava a maior parte do seu tempo trabalhando com afinco: escrevia contos e crônicas, sustentava colunas e produzia grandes reportagens. Por motivos não revelados, havia ficado muito tempo sem trabalhar no atelier. Depois das férias, como se fosse necessitado, trabalhar em dobro. Um verdadeiro gigante! Isso era do agrado da família e... especialmente de d. Sânia.


Passara-se mais um ano. Sempre a mesma rotina: Juan — trabalhando e de vez em quando viajando; Sânia — Sâninha ao gosto das amigas de Lucy — tendo reencontrado uma companheira de infância, com esta passava a maior parte do tempo relembrando o passado, quando não saía à procura de emprego que fosse do agrado de Juan; e Lucy — esforçando-se o mais que podia na Escola de Dança, desincumbia com prazer as matérias do curso, coisa que o Professor Botanívo não podia compreender como sua aluna Lucy pudesse ter tanto interesse pelo balé.


Várias vezes Lucy chegava-se à mãezinha para mostrar-lhe o que já aprendera nos três últimos anos de estudo. Inútil: a mamãe não lhe dava a atenção que merecia. Muitas vezes Sânia deixava a filhinha em escanteio, isto é, falando sozinha. Não raro demovia a filha a mudar de assunto.


Lucy conhecia o total desinteresse da mamãe quando se tratava da criatividade artística da filha, de sua desenvoltura ou de seu desprendimento em favor da causa que abraçara: ser uma bailarina. Mas não se dava por vencida: dedicava-se cada vez mais aos estudos. Para contrabalançar as asperezas da mãezinha, trazia suas colegas de curso e lhes apresentava, com a recomendação de não falar em dança. Sânia as recebia delicadamente e com as visitas mantinha uma conversa agradável. Mas, ao menor pressentimento, cortava qualquer assunto referente a dança. 


Como é natural, haviam representações na Escola de Dança. Nesses dias, as alunas imprimiam o maior esforço possível, visando o maior brilhantismo da Representação, tamanho era o gosto que traziam também seus pais. Estes viam, com orgulho, o bom desempenho de seus filhos. Sânia, raramente comparecia; mas Juan mantinha a sua presença, argumentando que "Teatro é  c u 1 t u r a."



* * *



 

XII — CAPÍTULO


ECOS E TRECOS



Lucy era uma das mais novas integrantes da turma do balé constituída de estudantes entre os quatorze aos dezesseis anos de idade. Esta era uma turma considerada de escol.


Certo dia Juan levou Lucy a uma Representação de alto nível, na qual as bailarinas davam um show de beleza e graça, que era um deslumbramento. No final do espetáculo Lucy pedira a Juan que a levasse aos bastidores, pois queria ver de perto as Bailarinas. Dentre elas, Lucy veio a conhecer Belinda, uma jovem muito linda e muito meiga, que usou as seguintes expressões:


— Oh! que gracinha! Quer ser bailarina? Mas que amor! Olhe menina, para ser bailarina você terá que: estudar bastante, soltar o corpo e envidar esforço e boa vontade para não engordar muito. Feito isso: sucesso!


— Obrigado linda jovem! — era Juan quem agradecia.


Juan voltando-se para Lucy, chamou-a:


— Vamos, querida! Sua mãe deve estar preocupada com sua longa ausência de casa. É bem provável que a srta. Belinda também deseje descansar.


— Oh! Que nada! Eu me sinto até melhor depois de uma participação em espetáculo cênico ou de balé. Desculpe-me, mas eu gostaria de tomar emprestada, por alguns instantes, esta coisinha bonitinha, para mostrar-lhe o meu camarim. Posso ou não posso?


— Não! Queira desculpar-me, Senhorita. Todavia, se essa "coisinha bonitinha" quiser, então pode levá-la! — diz Juan a sorrir.


— Eu quero! — gritou Lucy, sacudindo o corpo, indo ao Camarim.


De volta do Camarim, Juan e Belinda, mais afastados, conversavam sobre Lucy. Esta reuniu outras participantes e começaram a brincar. Uma delas, vendo a menina muito apressada, alertou!


— Calma! Vamos com calma, Lucy, pois temos cinco minutos.


Pouco tempo depois, encontraram-na do lado de fora do Teatro. Lucy estava radiante, feliz e tagarela, junto com outras garotas. Colhia os frutos de sua amizade e cativante simpatia. 


Enquanto isso se passava, outras pessoas acercaram-se de Belinda e Juan, querendo conhecer o rapaz. Mas eles afastarem-se e o diálogo continuou:


— Sr. Juan, quero e devo parabenizá-lo pela encantadora menina que tem. Não encontrei, até hoje, alguém com tanto entusiasmo para o balé, como Lucy. Note-se que o balé é uma dança tão bonita, quão difícil. Por isso me sinto muito feliz por conhecê-la. Só que percebo, por seus olhinhos, uma leve tristeza em sua alma. O sr. poderia me explicar o “porque“?


— Sabe, Belinda, talvez a srta. possa ajudá-la. O sofrimento de Lucy decorre da indiferença da mãezinha, pela dança, especialmente o balé. Lucy ainda não teve o incentivo e muito menos o apoio da mãe nessa questão.


— Mas como pode haver alguém que não aprecie o balé?


— Sim, há? E essa pessoa e justamente a mãe da jovem que traz em si o desejo de tornar-se bailarina — Lucy.


Num leve suspiro, Belinda exclamou!


— Pobre menina! Gostei muito de Lucy!


— Temos a certeza que ela levará o seu desejo até o fim. De minha parte darei todo o apoio; qualquer pai daria até sua vida para que o filho suba.


— Vou procurar ajudá-la a vencer os obstáculos.


— Ela está precisando, não só de ajuda material, sobretudo de apoio moral.


Belinda fica encantada com o incentivo de Juan e toca-o: 


— Diga-me sr. Juan, o sr. é político?


— Não; mas bem que poderia ser! — e assim o jornalista encera o colóquio com a bailarina Belinda.


Juan e Lucy chegaram em casa à noite alta. Sânia os recebe com uma repreensão:


— Sr. Juan. O que lhe deu na cabeça trazer minha filha a esta hora da noite?


Desculpe-me, Sra. Sânia; acontece que encontramos um amigo com quem ficamos a conversar.  E veio daí a pequena demora.


— Pois, fique sabendo sr. Juan, que jamais permitirei que minha filha seja levada a "benditos" passeios.


Sânia falava assim, sem imaginar aonde tinham ido, o que a punha em risível situação. Certo dia Juan levara Belinda para que Sânia a conhecesse. E o encontro foi natural, sendo a conversa sem afetação. Mas logo ao saber que se tratava de uma bailarina, Sânia esfriou a conversa, que já não tinha entusiasmo, e, dando um "Com licença!“ retirou-se, deixando Juan e a visitante sozinhos na sala de visitas.


Outro dia, Juan decepcionado com a frieza social e rebeldia de Sânia, a repreendeu no seu próprio quarto, quando remexia e velho baú. "Há razões que a própria razão desconhece" — diz o ditado popular. Mas a reação de Sânía foi terna e calma!


— Sr. Juan, como pode entrar,assím, sem bater a porta?


— D. Sânia, precisamos conversar um pouco. Por que a Sra. tanto desserve as suas visitas? Trate-as bem! Isto é bom para todos.


— Quem é o sr. para me dizer como deve tratar as pessoas?

— Será que a sra. não pode guardar esse seu orgulho, nem que seja por um instante, para que possamos discutir em paz os problemas que nos afligem? Ou não somos gente civilizada?


— Ora! Gente  c i v i 1 i z a d a !  É impossível conversar com o sr., quando não me trata como gente civilizada!


Juan havia perdido a paciência e a partida, só lhe restando um caminho: retirou-se do quarto, fechando levemente a porta, e volvendo imediatamente para viabilizar um novo encontro, dizendo:


— Até logo, Senhora!



* * * 



XIII — CAPÍTULO


FIRMEZA DE ATITUDE



No ano seguinte, a casa de Juan permanecia em paz, notando-se algum progresso. Sânia era a mesma de sempre: diligente, resolvia os problemas da casa, mas pervagava quanto a adesão à dança. Mas Lucy dançava no palco de sua Escola com o “parceiro"; flutuava no ar como pluma, os pés juntinhos, com muita graça e propriedade. Em alguns casos, havia ultrapassado suas colegas. Ciente disso, estava sempre a frente, no palco. E quanto a Juan, este rapaz revelou-se um primor de Chefe da Casa, na melhor harmonia com d. Sânia. Por outro 1ado, estava firme nos atos e atitudes.


O prof. Botanivo acompanhava com interesse o bom desempenho de sua aluna. Mostrava-se cada vez mais atencioso, ensinando a Lucy-passos novos, para que ela realizasse o melhor desempenho nas representações.


Certa vez realizou-se um concurso na escola da dança, para descobrir a bailarina exponencial dentre as mais influentes. Os interessados se movimentaram. Houve preparação de alunos. No dia do concurso, os candidatos estavam "OK“. O Prof. Botánivo era o Presidente da Banca Examinadora. Finda a apuração ele apresentou Lucy, como aprovada, pois que reuniu os requisitos estipulados pela Comissão Patrocinadora. E Lucy encheu-se das melhores referências. A partir desse dia  L u c y  passara a ter mais e diversificadas aulas de Balé. Altas, aulas altas!


A Escola ganhara mais um professor: instruído e culto. O ENSINO, para muitos alunos, passara a ser intensivo e mais difícil. Lucy esforçava-se o mais que podia, para que fosse incluída entre as mais benquistas, por serem as melhor ensaiadas. Por esse esforço foi reconhecida pelos professores como a melhor aluna. E não parou aí: aprendeu e executou vários passos que ainda desconhecia.


Sendo muito solicitada no aprendizado, Lucy chegava em casa cansada, tendo os músculos doloridos devido a intensidade dos ensaios. Não obstante, Lucy, sem desânimo, não cedia ao cansaço; mas permanecia firme nos estudos. Aos quatorze anos já dançava no palco, onde muitas peças foram levadas a cena. Entanto,Lucy ainda não podia participar, segundo o seu Professor, por estar insuficientemente preparada. Agora, porém, havia evoluído bastante, estando brilhantemente ensaiada.


Sânia, inimiga das artes cênicas, insistia em não aprovar o Balé, embora se notasse em seus hábitos um facho de compreensão e aceitação. Esta, sempre negada; aquela, às vezes revelada. Mas Sânia primava em não dar a conhecê-las.


Juan adoecera. Tendo sido acometido de um acidente, o médico o aconselhara guardar absoluto repouso por duas semanas, findo as quais, poderia andar, "mas sem forçar a barra". Nesses dias, Sânia havia tomado o seu lugar, como jornalista amadora, saindo-se muito bem. Por delegação de Juan assinava todos os artigos, fazia reportagens e entrevistava autoridades, tudo com desembaraço!


Apesar dos estudos, Lucy, nessa fase, era toda atenção e presteza: cuidados especiais prodigalizava a Juan; cuidava da casa e preparava muito bem o almoço; e, muitas vezes entregava-se à venda de jornais, oculto da família. O fito era ganhar um dinheirinho para ajudar no equilíbrio da receita e despesa da casa e naquelas de caráter pessoal.


Sem ligar às recomendações de Juan para desistir do trabalho, Lucy não deixara o seu comércio de venda de jornais, cujo lucro dava para comprar a medicação receitada para Juan e outras coisas de urgente necessidade. Entretanto, Juan não imaginava de onde provinha o dinheiro que Lucy gastava com as utilidades da família, cujos laços iam se consolidando e apertando sempre.


Sânia também insistia para que a filha deixasse de ensaiar semanas após semanas, alegando que só trariam despesas. O velho baú estava empoeirado. Desde aquele dia do "conselho " de Juan, que nunca mais mexera nele, não por falta de tempo, mas de motivação. Aliás; o abandono do "baú" tinha origem sentimental, e se entendia facilmente, mercê daqueles olhares de Juan, que a perturbava até o "íntimo".



* * *



XIV — CAPÍTULO


DOIS INSTANTES




Face às instâncias de Juan, o sr. Jánesson, o novo professor de Balé do ano anterior, deixara Lucy participar de um Balé.


Achava-se na cidade o Conde Tudor, um dos convidados especiais para essa Representação. Devido a sua posição de emérito professor de Dança, Jámesson recomendava às suas alunas o maior empenho a fim de que o sucesso fosse absoluto. Sabia-o que todas as bailarinas estavam bem preparadas para o grande dia. Só Lucy, no seu entender, estava ainda imatura. Daí a  recomendação:


— Lucy, por tudo o que e sagrado, lembro não cometer nenhum deslize! — disse o Professor e continuou:


— Esta Representação é da maior importância para mim e para todos os alunos participantes! — respirou fundo e prosseguiu: — O sr. Conde estará presente. E vocês sabem quem é o Conde Tudor? É o tio do sr. Ramires, o dono deste Teatro! Compreenderam bem a necessidade de um bom desempenho do Conjunto?


E com outras recomendações desse tipo, Jámesson dirigiu ensaio final, sentindo-se satisfeito por ter observado que os dançarinos absorveram nitidamente o ensinamento ministrado.


Se não fosse os "prós e os contra", Lucy se sentiria mais feliz por antever a realização dos seus sonhos. É verdade que não iria dançar com um vestido rosa e sapatilhas vermelhas; ou com um vestido vermelho e sapatilhas rosas. E nos dois casos, com um laço nos cabelos. Certo é que iria dançar para um Conde.


A essa altura da expectativa, Lucy já não podia conter o nervosismo que atingia a todos. Mesmo assim, Lucy estava alegre.


Por caprichos da sorte, o vestido que lhe coube era de cor azul. Ela se portaria na última fila. Assim, seria apenas uma acompanhante. Apenas acompanhante!


Juan já estava quase restabelecido do acidente. Ainda doía. Mas esforçava-se para levantar e reassumir os encargos. Desejava ansiosamente estar assistindo a Representação. E dizia: 


— Quem disse que eu vou perder o Balé e não ver minha pompinha dançar? Eu terei que ir a essa Representação, nem que seja em cadeiras de rodas!


Por mais que Juan persistisse, Sânia, como sempre, não mostrava interesse em comparecer a esse espetáculo, que era a coqueluche da cidade, pois o povo só falava nisso. De nada adiantavam as súplicas, pois a mulher era indiferente, fria e inflexível.


— Sânia, como pode fazer solfejos de soluço a Lucy? Eu não a desculparei; ela não a perdoará! — era Juan quem advertia.


— Sr. Juan! Faça-me o favor de não se intrometer em minha vida! — Verberava Sânia, deixando transparecer uma pinta de sorriso, para aliviar o choque da resposta acre.


— O que custaria ir ao Teatro ver, pela primeira vez, sua própria filha representar para o grande público? — dizia Juan.


— Eu sempre fui contra isso e sempre o serei! — falou Sânia.


— Sânia, o que é que você tem no lugar do coração: uma pedra ou um baú? Não poderia estar presente, nem que fosse para agradar Lucy? — questionou Juan.


— Deixe-me em paz, sr. Juan! Lucy está cansada de saber que eu jamais comparecerei a um espetáculo desse gênero!


Juan fita-a, paciente e demoradamente, forçando um sorriso!


— O que está esperando? Vá logo se arranjar para ir ao Teatro. Todos nós a queremos muito bem! Retribua, Sânia!


— Deixe-me em paz, por favor! — revidava Sânia, grotesca, intercalando uma pergunta: — E você vai?


— Eu irei, sim! Lucy ficará feliz em me ver. E se perguntarem pela mãe dela, serei muito digno em dizer que acha acamada e que de maneira nenhuma poderia comparecer. Só. Cadê coragem para falar a verdade a seu respeito!?


Após este desabafo, Juan retira-se deixando Sânia perplexo, parada, confusa, ante as palavras do jovem desenhista, que se afasta, mas sua imagem fica gravada no subconsciente de Sânia já cedendo à realidade. Viu que a porta foi fechada delicadamente e de modo algum o rosto de Juan se alterou.


Era hora de tomar uma decisão. Decidiu. Correu ao quarto de dormir, tomou o velho baú empoeirado, que parecia estar à sua espera, e, abre-o.  O avelhantado retrato de Teodoro parecia fitá-la, com uma expressão de quem repreende ou adverte energicamente. Sânia reage. Retempera as forças já abaladas e fita-o, por alguns instantes. Segue-se um momento de profunda inanição e moleza. Nesse estado de espírito, não suportando mais a pressão interior, retoma o retrato, suspende-o de mansinho, devagarinho, com carinho e... (há suspense) atira-o ao chão, sobre o qual tomba desgovernada, quebrando em pedacinhos o vidro daquela relíquia.


Em desespero, impulsionada pelo remorso, levanta-se e se atira à cama, chorando copiosa e desesperadamente. Pára de chorar e recobre o ânimo, reativando as forças físicas. Senta-se, decidida a praticar um gesto nobre. Levanta-se e implora:


— Perdoe-me, Teodoro! Perdoe-me! Eu não posso mais ficar contra Lucy! Eu não posso suportar essa saudade ... Não sei mais como agir contra minha própria rebeldia.


Pára, recupera o vigor debilitado. abaixa-se e toma o retrato. Recolhe, um a um, os pedacinhos de vidro, mas fere um dedo. No momento seguinte, abraça o retrato e beija-o piedosamente. O choro recrudesce. As lágrimas pingam no dedo ferido e unem-se ao sangue e se desprendem, respingando no piso. Tenta recolher algumas gotas das lágrimas e do sangue, separadamente, mas não consegue, senão, fazê-los salpicar o retrato, que ficou manchado.


Sânia estava cansada e vencida. Procurou o leito, levou seu Teodoro ao seio, continuando a abraçá-lo e beijá-lo, como se ali estivesse o marido em carne e osso. A confusão das idéias que antecedem ao sono, formaram um turbilhão de ruídos e sons inarticulados e... com isso adormeceu placidamente.



* * *



XV — CAPÍTULO


NO PANTEÃO



O povo, em regozijo antecipado, quebrava o silêncio no recinto do Teatro. Começava o corre-corre. Era a avalanche de pessoas vestidas com requintado gosto, dirigindo-se apressadamente aos guichês, na disputa de conseguir os últimos lugares. Nos bastidores, as bailarinas estavam à postos: umas, se preparando, outras, se retocando e, ainda outras, ensaiando. Enfim, todas já quase prontas para entrarem em cena.


O Conde já havia chegado ao Teatro. A estrela maior seria Vanessa, considerada pela crônica especializada, como uma das melhores bailarinas da cidade, porque, além de notável, era portadora de singular beleza. O prof. Jámesson dava tudo que podia para satisfazer as exigências da artista cênica. E não é de admirar estivesse o famoso professor torcendo por um grande desempenho de Vanessa.


Chegou, afinal, a hora do grande momento. As dançarinas bem motivadas, achando-se com o suficiente preparo, físico e moral, estavam radiante de alegria aguardando o sinal para início da função. Foi convencionado que, ao acender-se as luzes da ribalta, dar-se-ia a entrada triunfal no palco.


Houve luzes e ressoaram palmas! Era a abertura do espetáculo. Todos os bailarinos começaram a dançar com garbo e beleza, ao som da grande orquestra. Algumas bailarinas, aparentemente calmas, estavam nervosas; outras esmeravam-se na elasticidade dos passos; enfim, outras sustentavam a flexibilidade do corpo em harmonia com os movimentos. uma coisa era visível: todas as bailarinas, em particular, estavam cônscias de um bom desempenho cênico do conjunto.


Entretanto, somente Lucy com seu pendor o encanto, mantinha-se calma nos equilíbrios e ativa nas evoluções. Isto lhe possibilitou executar com perfeição e graça, os simétricos passos coerentes com a música: realizar um melhor desempenho individual e assumir, no grupo, a dinâmica dos movimentos.


Ostentando um lindo sorriso no desenrolar ao espetáculo, Lucy revelou-se, não apenas a mais bela das acompanhantes, sobretudo a grande bailarina. Isto porque, Lucy abria os passos e as outras acompanhantes, com desembaraço e segurança, seguiam-na alegremente. Daí, advirem as palmas, e mais palmas da platéia, aplaudindo com entusiasmo o inesquecível espetáculo. Para os espectadores, os aplausos prenunciavam para Lucy uma aceitação plena e sua breve entrada no Panteão da Glória.


Ainda do lado de fora, sem participar do grupo, Vanessa estava apreensiva com os passos de Lucy, tão admiravelmente aplaudida. No momento exato de mostrar-se ao público, Vanessa temeu. Ficou nervosa com a possível perda da posição de destaque que até então ocupava. Preocupou-se em demasia. E cedeu a um desejo de vingança. Fez uma careta, triste e torpe para Lucy. Esta, sem ligar para o gesto da "notável bailarina", deu-lhe passagem para a primeira fila, no centro do palco.


A apresentação de Vanessa fora curta e inexpressiva. Seu rosto tinha uma catadura sinistra. Seu estado era agonizante, não conseguindo concentrar-se no papel que lhe cabia desempenhar. A platéia arrefeceu o entusiasmo e as palmas foram convencionais.




* * *



XVI — CAPÍTULO


A TEMPESTADE



Findo o entreato, reacenderam-se as luzes da ribalta e teve reinício — a parte final — o espetáculo. Preocupadíssima com a situação criada, não obstante achar-se ao lado de um grande dançarino, Vanessa se estremecia e se agitava, ao ver o brilhante desempenho de Lucy na condução dos outros atores.


O espetáculo chegou a seu termo e os aplausos foram delirantes. Todos queriam ver de perto e conhecer Lucy, a estrela maior do Balé, a sensação do espetáculo.


Finda a Representação, Vanessa fora encontrar-se com Lucy. Tinha no olhar uma expressão odienta e indecorosa, ancha que estava de raiva, por ter se eclipsado perante Lucy. Num misto de desabafo e reprimenda, chamou Lucy e explodiu:


— O que é que você pensa que é? Que está pensando? Quase estragou a minha posição. Nunca mais faça isso, ouviu?


— Desculpe-me! — respondeu Lucy. Eu percebi as colegas agitadas, então... tive o bom gosto de conduzi-las a um bom desempenho. Só isso.


— Então o quê? Fique sabendo que elas não estavam agitadas com você por perto, ouviu?


O prof. Jámesson que estava próximo às duas bailarinas, interfere com vigor: 


— O que é isso! Vanessa, venha cá depressa! O que esta acontecendo entre duas estrelas? Por que essa tempestade num copo d'água? Venha cá Vanessa!


— Jámesson, quero que saiba, nunca mais, à partir de hoje, dançarei ao lado dessa daí! Entende? 


— Por que isso? Lucy dançou realmente bem. E devo parabenizá-1a por isso. Por seu desempenho no balé, revelou-se a grande bailarina da cidade. Mostrou-se segura e senhora de si. Daí, os meus cumprimentos a Lucy.


— O que? E você aida a cumprimenta? Ela quase tomou o meu lugar!


— Acalme-se, Vanessa! — É Jámesson quem interfere. — Ninguém irá tomar o seu lugar! Acalme-se!


— Jámesson! Vou para o meu camarim. Se quiser falar comigo, lá estarei às suas ordens. Procure-me!


Vanessa sai transtornada, cheia de ciúmes e inveja. Por seu traquejo social. Jámesson dirige-se à novel bailarina:


— Lucy, parabéns! Você foi muito aplaudida!


— Obrigada, Professor!


— Desculpe a Vanessa. Ela está nervosa. Nunca a vi assim!


— A culpa foi minha, prof. Jámesson, minha! Eu é que a fiz sofrer involuntariamente...


— Ora! Não vamos falar mais nisso, pronto! Você é que realmente estava ótima! Como conseguiu tanto saber em tão pouco tempo? Você notou como o Conde a aplaudia? De agora por diante precisamos treinar sempre esse mesmo grupo e você com especialidade. É que você mostrou que talento prova-o, quem o tem. Você tem talento e arte, para o balé. Receba, mais uma vez, os meus sinceros parabéns!


— Oh! Muito obrigada. prof. Jámesson!


— Onde estão os seus pais?


— Meu tio está aí fora esperando a vez de me cumprimentar.


— Ótimo! Vamos conversar com ele!



* * *


XVII — CAPÍTULO


CONSENSO



Juan já vinha ao encontro de Lucy, dizendo embevecido:


— Lucy! você estava linda!


— Obrigada, Juan! — E apresentou! — Este, o Sr. Jámesson, nosso prof. de Balé. Ele quer conversar com você. — E concluiu:


— Sr. Jámesson, este é o nosso Juan.


— Muito prazer, sr. Jámesson! Foi um ótimo trabalho. Aceite os meus cumprimentos!


— Oh! meu jovem! — começa o professor — O mérito não foi todo meu. Devo admitir e proclamar que esse mérito é quase todo da senhorita Lucy. Ela agiu perfeitamente bem! Sozinha! E é a respeito desse assunto que desejo conversar com o senhor. Permite?


Lucy os deixa a sós e volve-se às outras companheiras, que também queriam cumprimentá-la. Recebidos os cumprimentos naquela algazarra dos jovens, a uma pergunta responde:


— Juan está trocando idéias com o nosso querido professor Jámesson a respeito do Espetáculo.


Vamos conhecer as idéias de Jámesson e Juan. Disse o Professor: 


— Sr. Juan, proponho dizer-lhe, e atesto mesmo, que Lucy tem um grande talento para o Balé.


— Oh! que bom! — exclamou Juan.


— Pretendo fazer de Lucy uma estrela de primeira grandeza! — continuou Jámesson — Ela chegará facilmente ao pináculo da glória, como diz o poeta! Tenho certeza!


— Sr. Jámesson! — retomou a palavra Juan. — Lucy, desde a mais tenra infância queria revelar o seu talento. Sempre alimentou o ideal de vir a ser uma bailarina. De minha parte, sempre me esforcei para que esse desejo se concretizasse!


— De minha parte, se me permite, também farei o possível para consolidar o sucesso de Lucy. Eu tenho toda a certeza de que ela virá a ser uma grande estrela. Só que de agora em diante ela terá que assumir mais aulas, para depois ir representando-as tanto em pequenos números, para que possa crescer, com segurança e mestria, no cenário artístico teatral, como nas grandes representações, como a de hoje, que requer o exercício e prática das técnicas mais avançadas, para a sagração do artista! Prometo, para breve, que Lucy terá notória celebridade, representando grandes papéis.


— Eu posso garantir que ela conseguirá em apenas um ano! — disse Juan eufórico.


— É pouco para uma principiante. Mesmo sendo ela chamada Lucy! — retemperou Jámesson — Acredito ter experiência no assunto!


— Pois continue, sr. Jámesson, treinando a nossa principiante, e verá do que ela é capaz.


— Farei o possível, sr. Juan; repito, farei o possível!


Seguiu—se um longo aperto de mãos. A troca de “ideias", terminou aí. Juan e Lucy voltaram ao bar, onde passaram alguns instantes revivendo as felicitações recebidas por tão grande representação.



* * *



XVIII — CAPÍTULO


CAMINHOS ABERTOS



Já às caladas da grande noite, Lucy  e Juan tomam um rápido cafezinho e voltam para casa. Ali chegando reinava o silêncio. E Lucy estranha a ausência da mãe e inquieta-se:


— Cadê mamãe?


— Ora, Lucy! Provavelmente está dormindo . Amanhã você conversará com ela.


Lucy procura o seu quarto de dormir, de refletir, de sorrir com a bonequinha, quase abandonada; fecha docemente a porta e... Vai dormir.


Juan dirige-se ao quarto de Sânia. Bate à porta. Nada! Ninguém por ali. O que é que há? Volta novamente à porta e ao bater notou que estava aberta. Entrou. A viúva encontrava-se numa posição de repouso, tendo o retrato aos braços. Estava dormindo! Retira-lhe o "Teodoro" do regaço, coloca-a na cama, tira-lhe os sapatos e põe sobre a "deusa dos meus sonhos" os sofríveis cobertores de lã. Depois guarda o retrato no baú e sai calmo e silenciosamente.


Pela manhã, na hora do café, Sânia o procura:


— Sr. Juan, não seria inútil dizer que foi o senhor que entrou no meu quarto ontem. Não foi?


— Como soube, Senhora, se estava dormindo?


— O sr. não deixa o péssimo costume de entrar no meu quarto, sem permissão! Onde está o retrato?


— Coloquei-o no baú! Parece-me que amanheceu com os olhos inchados, ou será impressão minha?


Sânia afasta-se um pouco e é Juan quem fala:


— Não acha que já e hora de acabar com os fingimentos? Por que não diz que chorou, ontem, ao ter imposto uma desfeita a você mesma?


— Não o estou entendendo! — dissimula, Sânia, o cerco, o aperto de Juan, com um ataque frontal.


— Está, sim! você queria assistir o espetáculo e não foi por orgulho. E depois que saímos correu ao quarto a chorar! Certamente que não teria chorado tanto se não tivesse alimentado no peito essa perversa opinião negativa!


— Sr. Juan! Como consegue entender meus pensamentos? — E já com uma voz calma e segura, continua: — Eu não vou mentir mais! Realmente fui ao quarto chorar, não porque tivesse uma opinião própria e ainda mais — negativa, como há pouco declarou. Eu chorei porque não suporto mais o sofrimento que infrigi a mim mesma, por agir dessa maneira! É algo mais forte que eu! Toda vez que

tocam em "bailarinas“, eu sinto uma força estranha que me obriga a agir contrafeita. Mas depois que acaba esse meu furor, tenho vontade de chorar!


— Eu sei o que é isso! É a lembrança do seu finado marido que a faz agir assim. Você sempre teve ciúmes dele no relacionamento com as bailarinas. Quando vem à baila essas conversas, passa a lembrar o passado cheio de ciúme. Age por um desastrado instinto de conservação. Tome o meu conselho: procure não se lembrar mais desse tempo já mutilado e toldado com a realidade presente.

Passado e passado, pronto! Faça isso e verá que estou certo.


— Como o farei? — pergunta Sânia, vencida.


— Dê uma força a Lucy! Ela está, a muito tempo, carente desse vigor moral. Haja CORAÇÃO! Faça como fazem as outras mães, passe a compreender sua própria filha. Ajude-a! — E concluiu: — Uma mãe sempre faz cada filho feliz!



* * *



XIX _ CAPÍTULO


A ALAVANCA



Passaram-se longos tempos após a abertura dos caminhos. Havia paz e bem na "casa da viúva de Teodoro", denominação que fora inventada pelo próprio dono da casa — Juan. Tudo ia bem, muito bem.

Era perfeito o relacionamento entre Juan, Sânia e Lucy. Esta.entrara no salão de festas, onde se achavam Juan — amigo e protetor e Sânia — sua mãe, entretidos em animada conversação. E diz:


— Vocês não veem tomar café? Está esfriando!


— Já estamos indo! Sânia, vá fazer sua filha feliz.


O café foi servido. Mais tarde reencontram-se aquelas três excelentes pessoas. Sânia olha para Juan e sorri. Depois também olha para Lucy, e dá aquele sorriso. O motivo era um só: a cordialidade reinante naquela casa, depois da "abertura dos caminhos". Lucy também sorri para a mãe e, com doçura angélica, acolhe aquele sorriso franco e maternal. Havia passado muitos anos que não recebia um carinho, mesmo que fosse pelo olhar. Arrumou-se e foi aos ensaios de dança.


Sânia nunca mais perturbou a filha com a ideia de privá-la da dança. É bem verdade que Sânia não participava dos ensaios, mas procurava saber dos programas, por intermédio das colegas da filha.


Passados muitos meses, Lucy havia melhorado bastante sua técnica de dançar. Os seus bailados davam gosto vê-los. É que, nos ensaios, sempre se avantajava. E nas Representações, empenhava todo o seu esforço e dedicação.


Passado algum tempo havia chegado à cidade um famoso escritor, que vinha lançar um novo livro em sua terra natal. Por sinal, o livro era tido como sucesso garantido. Todas as pessoas cultas acercaram-se do autor patrício. O lançamento, com uma noite de autógrafos, ocorreria no teatro local. Jámesson foi o primeiro a falar com o escritor:


— É uma honra para mim tê—lo em nosso Teatro, sr. Castro de Andrade! Pena e que sua presença ocorra na hora dos ensaios.


— Mas é justamente sobre isto que estou aqui: o lançamento de uma produção em noite de autógrafos. — Explicou Andrade.


— Neste caso vamos ao meu escritório. Lá conversaremos melhor, inclusive entrando nos detalhes da festa.


No escritório de Jámesson, é o visitante quem inicia a conversação, depois de servido o cafezinho feito na hora:


— Professor Jámesson, eu gostaria que o senhor visse, por antecipação, este meu livro em lançamento. É uma peça que escrevi, com carinho e amor, dedicando-o à minha esposa, que me incentivou. Muito estimaria que o senhor apresentasse.


— Oh! Mas será uma grande honra para mim. Só receio não ter, no momento, uma estrela digna desse papel.


Jámesson, tomando o livro, começou a folheá-lo e, ao devolvê-lo, informou, eufórico!


— Oh! mas espere, sr. Andrade! Eu tenho sim, uma estrela para assumir e fazer o papel principal da peça! — E sorriu.


— Que bom, professor!


— Então, tudo feito.


Algumas horas depois, Jámesson chamava sua "estrela" maior:


— Lucy, temos uma peça rica a encenar, da qual você há de ser a estrela maior! — diz a sorrir Jámesson.


— Mas professor... Eu? Logo eu? — diz Lucy num lampejo de felicidade.


— Há poucos dias para os ensaios, por isso temos que nos apressar! Eu tenho certeza de que esse papel foi feito para você.


Passaram-se os dias. Findaram-se os ensaios que foram dobrados. Juan acompanhava o desempenho de Lucy. E adivinhava ser aquela a grande chance sonhada por sua "pompinha". Sânia já não a perturbava. Também não lhe dava aquela força exigida por Juan; apenas não a molestava mais com represálias. E  L u c y  sentia-se bem com aquele estado de espírito de sua mãe, que mudava cada dia.


— O sonho de Lucy está perto de realizar-se! — disse Juan à Sânia. — Este lançamento teatral, é a alavanca da notoriedade de Lucy!



* * *



XX — CAPÍTULO


A GRANDE FESTA



Chegara o dia do lançamento da "peça", nome por que os atores rebatizaram o livro desse conterrâneo, escritor, teatrólogo e poeta fluente.


Lucy, com grande atividade, liderando o grupo de dançarinos, logo cedo foi ao encontro dos participantes.


O Teatro começa a encher-se de pessoas integrantes do elenco, tanto de artistas, como da administração. Como haviam sido feitas várias propagandas a respeito do evento, era necessário o afã dos interessados para que tudo corresse de acordo com a programação geral. Por tudo isso, as bailarinas não falavam em outra coisa, desque chegou esse tão esperado dia.


Em casa, Juan procurava Sânia. Encontrou-a no seu quarto de dormir abraçada ao antigo retrato. E queimou o primeiro cartucho:


— Você não vai, Sânia?


— Eu hão sei! — responde a mulher em voz sumida, amuada.


— Lucy está esperando por você, Sânia.


— Talvez ela nem faça questão que eu vá.


— Sra, Sânia! Claro que ela faz questão! E como! Mas diga-me uma coisa:  Por que você abraça esse retrato? Está procurando lembrar-se do "finado"? Ora bolas!


— Sr. Juan, eu amava muito meu marido!


— Desculpe-me! Não encontro a razão, não acho sentido amar a um defunto...


— Como ousa a tanto? Retire-se daqui! Me deixe em paz!


Diante desse corte estratégico, Juan não teve outro jeito, senão bater em retirada. Puxou a porta devagarinho e saiu. Mas a mulher do “finado" ficou a olhar o retrato dele, na moldura, mas com o espelho quebrado. Não choraria dessa vez. Estava decidida. E não chorou mesmo. Caprichos de mulher!


Enquanto isso, ao aproximar-se a hora do grande espetáculo, o Teatro pegava uma grande enchente de figuras, as mais representativas, da solícita sociedade local. Todos queriam ver e sentir de perto a tão badalada "Peça" do já famoso escritor patrício — o Dr. Andrade. As galerias estavam quase todas ocupadas: uma ou outra cadeira vazia. Juan chega eufórico ao Teatro, que, pela primeira vez, estava praticamente lotado. Era imperiosa a presença do jornalista amigo. Dirigiu-se ao centro buscando um lugar que pudesse ver Lucy e poder incentivá-la. Estava já bem perto do palco. Afinal,  um lugar vazio. Senta-se, após vasculhar com olhar felino, a amplidão dos assentos, em busca de Sânia.


Corre o tempo. Passam-se os minutos. A essa altura do tempo marcado, as bailarinas enfileiradas fazem uma concentração do espirito e dão o último apronto para a entrada no palco, ao contrário do que comumente acontecia, o cenário estava realmente mudado. Havia a profusão de lindas flores primaveris artisticamente arrumadas para uma nobre ocasião. As flores naturais emprestavam o seu perfume suave, enchendo o ambiente de saudável frescor. As flores humanas exsudavam o seu perfume artificialmente produzido, para dialogar com as outras flores.


Juan continuava a vasculhar o cenário. O tapete verde cobria todo o piso vermelho. As paredes azulados, com nuvens brilhante, embelezavam o palco colorido de forma espantosa. Nunca o palco estivera tão bem arrumado. Mas que decoração ambiental! E as grossas cortinas estendidas por todo lado, suscitavam curiosidade a quantos viam e sentiam intimamente o cenário, que impressionava profundamente as pessoas dispersas pelo vasto recinto.


Expectativa. "Faltavam poucos minutos para se abriram as cortinas". Eis que... Sânia aparece e senta-se numa das últimas cadeiras por ela, certamente, reservada. Até que enfim. Que alívio! Ainda bem que Juan percebera sua chegada. Suspira fundo. Esboça um leve sorriso, seguido de outro suspiro. Eis a natureza humana!


Ao sinal convencionado, abrem-se de alto a baixo as magnificas cortinas, mostrando à platéia um outro cenário jamais visto. Estava, de fato, muito bonito!


Chegam as bailarinas fantasiadas de borboletas multicores. Segue-se uma música alegre trazendo recordações inesquecíveis. É a eurritmia!.


Vai começar a função. Os espectadores estão, em verdade, diante de um fato ínusitado, nunca visto, à espreita da grande festa sócio-artístico-cultural. Nisto... apagam-se as luzes do recinto. Ficam as da ribalta. Na sucessão melódica e de forma, há uma simbiose de cores e luzes. Bastante cores e luzes multicores!


Começa o bailado. As borboletas oscilam como se estivessem flutuando no ar, numa efusão eurrítmica de harmonia, ritmo, canto. Cada dançarina com seu parelho, à bailar, à bailar ondulantes. 

De repente... as borboletas entrecruzam-se e se afastam com o parceiro, expendendo um gesto de saudação. Fecham-se as cortinas; apagam-se as luzes da ribalta; ficam as do cenário e aquelas estritamente necessárias. É o entreato. Palmas!! Muitas palmas!




* * *




XXI — CAPÍTULO


BORBOLETAS E VESPAS



É findo o intervalo. Recompõem-se as luzes. Recomeça a função. Uma borboleta pequenina, sem cor marcante, entra em cena.


Triste e sozinha, a Borboleta Pequenina começa a bailar sob uma música lenta, suave, inspiradora. Suas perninhas flutuam no ar. Suas asitas, de tão pequenas que não parecem asinhas, sem cor berrante, não têm brilho. Mesmo assim, baila triste e sozinha.


O cenário é dividido em duas partes. Em uma, não há profusão de flores, nem o tapete é verde; na outra, há flores em abundância e o tapete é marrom. Esta representação simboliza a terra:

numa parte estão os animais que não refletem nem amam, por isso são mutilados; na outra parte acham-se os homens, que refletem e amam, mas se mutilam mutuamente e são capazes de destruir toda a terra.


Quando a Borboleta Pequenina acabou de dançar, as luzes se apagaram na primeira parte e acenderam-se na segunda, revelando um outro visual à platéia. Nesta parte do cenário os olhares se cruzam e encontram-se. Aí, surge um grupo de bailarinos-vespas, que bailam, agora, ao som de uma música exótica, triste, esquisita. O som é agudo, a dança é andante e as paradas são intermitentes, sempre num crescendo, crescendo e... Pára. Agora volta a piano, mas é agudo. Nesse ambiente as vespas se agrupam, agitam-se e se afastam, à sorrelfa. À música aguda, estridente, sucede à gravidade do silêncio, aconchegante.


As pessoas vêem e sente de conformidade com a sua formação. No geral, os espectadores estão maravilhados com a sucessão de cor, de luz e de som, em constantes variações simbióticas. Num instante, se apagam as luzes do 2º cenário; acendem-se as do 1º cenário. Sucede entreato: fecham-se as cortinas; apagam-se as luzes da ribalta e ficam as do cenário exterior. E há palmas!


Mas em seguida entram em cena outros grupos de borboletas — são as bailarinas-borboletas , que se aglomeram ao centro, no qual está um Bailarino-Borboleta, com as asas coloridas, todo brilhante. E começa a bailar ao som de uma canção suave, bonita, um tanto dolente. As borboletas achegam-se a ele, deslumbradas, inquietes, tentando acompanhá-lo. O bailarino não se perturba e dança livremente, deslizando, com suas perninhas parecendo flutuar. As borboletas não cedem: sempre a volteá-lo, retrocedendo, aproximando e afastando-se a um gesto do Bailarino-Borboleta. Percorrem a extensão do palco, mudam de itinerário e trocam de pares.


Nisto, aparecem muitos ramalhetes de flores naturais. Cada borboleta colhe uma flor e oferece ao Bailarino-Borboleta, que recusa-as numa gentil rejeição. Pervaga a flutuar, escondendo-se atrás dos jarros de flores. Continua a perseguição e oferta, seguindo sempre no encalço do bem amado. E ao perceberem que ele é tímido e inapetente, param de segui-lo e fogem, deixando-o em paz.


Mas havia uma borboletinha incolor que espreitava tudo, detrás de uma árvore. Quando o Bailarino-Borboleta percebeu que todas tinham fugido, sentou-se numa pedra e adormeceu. Ao vê-lo adormecido, a Borboletinha Incolor, veio, flutuando, flutuando, parar perto dele. Aproximou-se, osculou-o, voltando a bailar à sua volta, ao som de outra música lenta, que fez o ambiente calmo e sereno. Mas o som ambiental desterrou o silêncio ao aumento do ritmo, que sucedeu, sem interferência na ação, e inação, da bai1arina Borboleta que dançava bonito com suas perninhas flutuando, flutuando sempre.


Súbito, o Bailarino-Borboleta acorda e a Borboletinha foge.


Recompõe-se as luzes e a orquestra pára. É um semi-intervalo para novo recomeço.


 


* * *



XXII — CAPÍTULO


O IDÍLIO


Findo o intervalo, reacenderam-se as luzes para a última função. A orquestra ataca uma música alegre, romântica, convidativa. Os artistas — grandes artistas! — voltam à cena.


Esfregando os olhos, o Bailarino-Borboleta começa a bailar, procurando a Borboletinha Incolor que se escondera novamente atrás da árvore. Tristonho, meio tétrico, senta-se numa pedra. Nesse instante, as outras borboletas entram bailando e rodeiam-no. Mas o Bailarino-Borboleta começa a divagar, procurando entre as dançarinas a Borboletinha Incolor, que muito amava. Não a encontra.

Com olhar perquiridor busca-a em toda parte. Nada! Nisto, a orquestra lança uma canção dolente. Então o Bailarino-Borboleta recomeça a bailar, a bailar, a bailar...


De repente, entram em cena, esfuseantes, assanhadas, aquelas vespas frenéticas, acaçapantes, querendo destruir tudo. As outras borboletas que se quedaram para ver o bem-amado bailar, alarmam-se e, assustadas, fogem. Agora as vespas, terríveis, endiabradas, atacam e começam a destruir as flores e as árvores. O pobre Bailarino-Borboleta tenta lutar contra as vespas, não resistindo o ataque, dá de fugida... mas é captado e raptado pela vespas, que tornam o caminho do bosque.


Há silêncio e uma expectativa de retorno do Dançarino. Nesse estado de coisas, surge a Borboletinha Incolor, saindo do esconderijo. Volve-se de um canto para outro, perguntando as flores espalhadas pelo chão, se viram o Bem-Amado. Vem a resposta:


— Não! — respondem as flores pisoteadas pelas vespas.


Eis que desponta a Musa - Deusa da Música, que emite um canto saudoso, suave, melancólico, cobrindo o penar da Borboletinha Incolor. Flutuando pelos cantos, a Musa também procura o Bailarino-Borboleta, desalentada, desesperada. Tudo em vão! E porque não o encontrou, deu-se a bailar tristemente. Cai e levanta-se recomeçando o bailado... E pára, exangue. A Deus é Euterpea.


Num átimo, ouve-se um ruído agudo, à maneira de um zumbir estridente, em meio a uma música aguda. A Musa reage e deriva para o outro lado do bosque. Escondida, a Musa apaixonada vislumbrava o Bem-Amado atado a uma árvore. As vespas, carnívoras e esfomeadas, num festejo lúgubre, aguardavam o instante de devorá-lo. A Musa assusta-se, reage e corre em busca de socorro. Encontra as borboletas que já vinham em auxílio da Musa, melodiana, aconchegante. Mas quando descobrem que essa Musa está também apaixonada pelo Bem-amado, irritam-se e disparam para além do bosque, negando a proteção desejada.


Entanto, cansada de procurar ajuda, sem obtê-la, a Musa - Deusa da Música. alvitra ir ao encontro da Borboletinha Incolor, que não descobre onde se alojou. Aí, cansada e apaixonada, deita-se no chão e chora copiosamente. Mas vem um lenitivo do Cáucaso: as beldades juntam-se às duendes e consolam a Musa triste e chorosa.


À Deusa da Música vem-lhe uma idéia: cantar fingindo-se feliz, indo em direção ao ninho das vespas e atear-lhes fogo. Então "meteu mãos a obra". Deu-se à bailar cheia de felicidade, entoando uma canção ligeira, até as proximidades do grande ninho das vespas, que se achavam esfalfadas de zumbir e vozear, antes do sinal do Olimpo para devorar o Dançarino-Borboleta. Mesmo por terra, as vespas apreciam a canção ligeira cantada pela Musa, e entram num  c o m o  estado de entorpecimento, entregando-se a um sono letárgico, o que facilitou a maior aproximação da Musa. Finda-se o cântico.


A Musa agora pervaga em direção às vespas. Começa a ajuntar gravetos, recolhendo-os aqui e ali, e arruma-os pertinho das vespas entorpecidas. Volta e reco1he mais gravetos, até encher o ninho das malfadadas criaturas, formando montes pequeninos. Ateia fogo e se esconde por trás das pedras, à espreita.


Logo, uma fumaça azulada aparece. Depois, começa a evolar enchendo todo o sinistro ninho das vespas. Estas, assustadas correm de um para outro lado. Pouco a pouco vão se intoxicando e cedendo ao ímpeto da morte, caem ao chão, vespa por vespa, até o extermínio do enxame. O mal é tristeza em forma de Vespa.


A platéia, em suspense, aplaude a matança, até a extinção do vespeiro. pela Musa Euterpe - Deusa da Música e da Alegria.


Extinta a fumaça azul, a Pequena Borboleta já não é mais a Borboletinha Incolor. Agora tem as asas azuladas, e no corpo, um brilho ofuscante. Andou, pervagou e foi localizar o Bem-Amado. o Dançarino-Borboleta estava adormecido no Bosque, amarrado a uma Árvore. Desatou-o e o levou, com carinho e ternura, para o outro lado do Bosque. Ali o deixou estendido no chão. Depois afastou-se, feliz por haver encontrado o seu amor, mas ansiosa que ele acordasse. Sem demora aproximou-se novamente do Bem-Amado para acordá-lo através da música. Achegou-se a ele. Estava lindo, mas estático. Fitou-o nos olhos e o acariciou. Tentou levantá-lo, mas o esforço foi em vão. Ergueu-se e se afastou. Decidiu entoar o cântico e cantou uma canção suave, cheia de meiguice e enternecimento. Súbito parou de cantar. Refletia.


Reaproximou-se lentamente do Bem-Amado, curvou-se, e o tocou e... Oh! Milagre! — exclamou. Agora, ele sorria. Agora,encontrou forças e o levantou, cobrindo-o de beijos, num grande amplexo, cheio de emoção e ternura.


Aos poucos o Dançarino-Borboleta foi acordando e acordou. Subitamente surgem borboletas. A Pequena Borboleta se atemoriza e tenta fugir. Ele é ainda lesto, a retém e domina-a. Enlaça-a e passeiam, juntinhos. Colhe uma flor e lhe oferece, como prova do seu amor alcandorado. Ela a recebe com alegria. E o acompanha ao centro do palco, onde recomeçam a bailar, entoando outra canção, suave, mas que traz contentamento.


Aos poucos as borboletas vão aparecendo e se movimentam até formarem um círculo, envolvendo o par de namorados. O círculo, bem depressa foi tomando a forma de um coração. E quando tomou a configuração desejada, a Pequena Borboleta estremece, pára e tomba. Rapidamente, o Dançarino-Borboleta a sustêm nos braços, e beija-a docemente, parado, emocionado, no centro daquele coração.


Apagam-se as luzes; fecham-se as cortinas; e seguem-se os aplausos. É a vibração da platéia!


Novamente abrem-se as cortinas e acendem-se as luminárias, para que os espectadores vejam os bailarinos-astros; e o cortejo de atores que atuaram no espetáculo. (Ecoam vozes, estalam palmas!) É o sucesso. Segue-se a "Noite de autógrafos".




* * *




XXIII — CAPÍTULO


DUPLA FELICIDADE



Sânia assistiu o espetáculo com lágrimas nos olhos. Devido à técnica da maquilagem e o sem nenhum contato com o Teatro, não reconheceu a filha entre as bailarinas. Como poderia imaginar que aquela doce borboletinha fosse Lucy? Por tudo isso, sentiu-se terrivelmente arrependida por haver, durante tantas anos, impedido sua filha seguir a carreira vocacionada de dançarina. Tinha a certeza que a menina a perdoaria, assim como acreditava, piamente, que ela — Lucy — tivesse o melhor desempenho possível.


Ao ser anunciado a “Noite de Autógrafos", levantou-se e foi correndo ao encontro da filha, abraçando-a terna e carinhosamente, entre beijos e abraços. Aquela efusão de corpo e espírito, foi percebido por mais da metade dos espectadores, que reconhecendo ser mãe e filha em saudação reparadora, explodiram em vibrante aplauso, com palmas prolongadas, num gesto de compreensão e encorajamento.


Nesse instante Lucy pode notar que o Teatro estava completamente lotado. Observou que a multidão, de pé, não dava passagem pelo centro. Então, mãe e filha, choraram alegremente. A mãe, estava feliz por ter assistido a felicidade da filha; a filha, felicíssima por atestar a presença da mãe, prova inequívoca de que, a partir daquele dia, já não punha obstáculo à carreira cultural da filha única. Foi, realmente, uma dupla felicidade.


Ao término das felicitações, não encontrando Juan, foram colher o autógrafo no livro do conterrâneo — "A Peça", como os atores a distinguiram, e retornaram para casa.




* * *



XXIV — CAPÍTULO


ALEGRIA TRICORDIANA



Ao chegar em casa, uma grata surpresa aguardava Sânia e Lucy. No meio da parede central do "São Francisco", nome dado ao salão nobre, estava um quadro em linda moldura, de meter inveja a Miguel Ângelo. O quadro apresentava uma encantadora bailarina vestida de vermelho, com um grande laço rosa nos cabelos e sapatilhas também rosa. A bailarina fazia um meigo gesto de agradecimento.


Com lágrimas nos olhos. Lucy contemplava aquela obra prima, em que se estampara a seguinte dedicatória!


"Para você, Lucy, com amor. Juan".


Quando Sânia leu, mais uma vez, a legenda, e pronunciou de maneira acalentadora o nome de JUAN, ele em pessoa, trazendo dois ramalhetes de rosas, disse:


— Pronto eu, Juan! — e continuou — Este ramalhete é para você, minha doce bailarina; e este outro, é para a mulher com quem desejo casar!


Dito isto, entregou-lhes os buquês, dos quais exalava um suave perfume. Sânia, espantada, recuou um pouco, como se algo a afastasse do rapaz. Procura controlar-se ante o inusitado pedido de casamento. Seu coração batia forte que chegava aos ouvidos de Lucy. Tentou uma reação, mas silenciou...


Mas Lucy que sentia a inquietação de um e a ansiedade de outro personagem, acudiu a ambos, plena de felicidade, com um grito!


— Mamãe! Por favor! Aceite!


— Eu, eu... eu... Aceito, sim, aceito!


E Sânia, num gesto comedido de sorrir, balbucia:


— Não sei como conseguiu, sr. Juan, meu noivo!


Um triplo abraço selou, para sempre, a alegria dos três corações. 



FIM

* * *




CONVERSA COM OS LEITORES


— Oi, gente boa! Vamos nesta?

Vou lhes contar como foi que decidi, se bem que sem o devido preparo, dar uma aparência de mestra. Aconteceu assim: a professora de minha classe, deu uma de confiar-me a direção do ensino, todas as vezes que era compelida a afastar-se, um pouco mais cedo, da sala de aulas, certamente que por motivos superiores. Convenhamos que isso era estranho; mas nesse mérito não poderemos entrar. Eu ficava muito contente e assumia a direção da classe com a aprovação unânime dos colegas. Se a regente tinha plena confiança em mim, e clero que eu me saía muito bem. E não é para duvidar que tudo correria sem  p r o b l e m a s.

Certa vez, aqueles meus alunos deram uma de fundir a cuca de sua nova "mestre", enchendo-a de perguntinhas descabidas, um tanto fora do programa. Fiquei alarmada. Mas tudo correu bem. Outra vez, foram as minhas alunas que tiveram a arte de atribuir-me epítetos graciosos, por exemplo: "EDIENÊI", que me puseram em guarda. Imagine-se! Eu, que tenho o mais lindo nome feminino do mundo, sentia-me como que chocada com a terrível alcunha. Reagia:

— Chamo-me EDIÊNEY! — dizia-lhes com ênfase — e disto me orgulho. Este foi o nome que papai me deu quando nasci. Há um ditado na boca do povo, que diz: “Mate o homem; não lhe troque o nome".

Às vezes, esses meus queridos alunos queriam sufocar-me com indagações pueris ou com questões "fora de série", ou ainda, “tiradas do gibi", o que me compelia a "querer fazer valer“ os meus direitos. Acontece que eu, evidentemente, não tinha direitos e muito menos deveres a pleitear ou a cumprir, salvo os de ministrar a aula. Quem era eu naquele tempo? Uma humilde concluinte do 1º grau.

Conquanto excelentes pessoas, esses meus alunos, que não eram sopa, chamavam-me de “Regente". Devido ao meu andar elegante, descobriram que eu era uma "bailarina". Quando, ao chegar ao quadro negro, me distendia indo de um ao outro extremo, nunca parando no centro, taxavam-me, entre si, de "Borboleta Dançarina" e "A Pequena Bailarina". Aqueles meus queridos alunos!...

  Um dia aconteceu um fato triste, mas histórico: um notável professor da escola onde eu estudava, aliás um bem vistoso escurinho, surgiu na minha sala de aulas, exatamente quando eu acabava de assumir o lugar de professora. Após inteirar-se da ocorrência, o "Notável" sacou-me do meu posto de trabalho e, com o dedo em riste, falou alto para toda a classe ouvir:

— Oi, garota! Você não é inteligente, não é autorizada, e não tem nenhum preparo. Então? Como quer ser professora? Volte à sua cadeira, Borboletinha Incolor! Onde anda a Borboleta Vespa, que não vem dar-lhe umas ferroadas? Cadê Sânia, que não vem sanear essa cabecinha linda? !

Não é preciso dizer-lhes, amáveis leitores, que voltei sumida para a minha querida carteira, aquela onde eu participava da aula e donde saía para substituir a Mestra. Mas tive um alívio: o protesto solidário dos colegas! Resultado: houve altercação e confusão, sendo suspensa a aula. Confesso que, naquele dia, fiquei chateada! A cabeça funcionava como se estivesse fora do lugar. Passei a refletir: "Em vez de criar um 'caso' com o 'Notável'; deitar a boca no mundo, botar a boca no saco, ou ainda, bater o prego na cuca: muito melhor será reprimir, levemente, esse valente espírito de defesa." E não é que pus a cuca no lugar?


Por incrível que pareça, após aquele dia, meus coleguinhas, os ex-alunos danadinhos, voltaram-se com garras e dentes contra o valente professor. A partir desse fato, o Mestre Sala, em vez de “Notável", passou a ser apelidado de "D.Juan das Arábias". E, quanto às colegas, quando uma elevava a voz contra outra colega, quando discordava ou movia polêmica, quando fazia qualquer coisa contrária às normas de comportamento, revelava-se disciplinadora, ou ainda, quando pisoteava de qualquer modo um colega: era chamada de “Saneadora", palavra que foi amortecida até ficar somente "Sânia“, acrescentando-lhe, depois, um diminutivo, e ficou "Saninha".

Depois daquele retratável episódio tive a ideia de querer, como tantas outras pessoas já o fizeram, dar também uma de escritora. Aproveitei as dicas nominativas lançadas naquele dia já distante, para as aplicar aos personagens do romance que eu tinha em vista escrever. E, assim pensando, assim agi. Com o titulo de "A Pequena Bailarina“ bolei um livro muito lindo. Cheguei mesmo a pensar que o meu livrinho estivesse realmente "lindo, lindo".

Na verdade faltavam algumas coisas ao meu pobre livro, aquelas coisas que os críticos exigem, tais como: concisão, propriedade, expressão, bom vernáculo e tantos outros requisitos. Ponderei: "Será que cada escritor tem consciência desta responsabilidade?"

Marinheiro de primeira viagem", cheguei a permitir a algumas pessoas amigas, uma olhadinha àquele meu livro, recomendando-lhes a imediata devolução após a leitura. Ninguém o reteve por muito tempo, mas quando mo devolviam, não diziam nada, nada! Aí eu arriscava: — Que tal uma opinião? Negavam sempre a fazê-lo. O que mais enunciavam era: "Gostei". Um “gostei" tão seco que se esfacelava ao menor sopro; ou tão gelado que parecia derreter-se no meu coração. Aí eu ficava encafifada!

Passaram-se os tempos. Eu já havia concluído, com méritos, o 1º Ano do 2º Grau — o Básico de Contabilidade. Tive umas ideias: a primeira foi ouvir um professor de Literatura; a outra, conversar com o meu papai sobre o assunto. O Professor deu uma de sábio, dizendo: 

"Quando se tem uma dificuldade de ordem literária a resolver, a qual esteja fora de nossas limitações ou de nossos recursos, é matéria pacifica buscar o saber de quem o tenha em abundância."

O Papai saiu-se com uma de bom conselheiro, dizendo:

“Sugiro que passe a ler, com atenção, os livros de ficção literária e científica, incluindo Mitologia, e os chamados não-ficção. Leia romances, contos e novelas de autores de renome. Essas leituras ajudam o iniciante a formular e resolver suas próprias questões, criar e estender novos horizontes, assimilar e aprender o que leu. Feito isso, formará o seu próprio pecúlio intelectual. Nesse afã encontrará a solução para todos os passas incertos e mal seguros que tenha dado, e para todos os casos intimamente conflitantes".

Papai tinha razão; e o Professor — também.

Comecei a ler tudo que era recomendado e me vinham às mãos. Uma coisa que aprendi foi selecionar os bons livros. Isto me fez um bem imenso. Não é que adquiri novos hábitos de leitura? E melhor ainda: passei a aprofundar o que lia. Um belo dia veio-me à cuca:  "Que tal a crítica?" Pensei, pensei... e reli este meu livro, lindo. Fui descobrindo, aqui e ali, falhas e mais falhas, embora que todas sanáveis. Ainda bem! Foi aí então que resolvi desvendar, página por página, os mistérios sondáveis do meu livrinho. Dei-me ao trabalho, sem quartel, mas toda esperançosa, da devassa do pobrezinho do meu livro querido. Era como se eu estivesse reescrevendo-o de novo, só que desta vez havia firmeza e determinação de produzir algo do agrado da crítica e da boa acolhida do público ledor. Nesse ponto compreendi que o fundamental era entender as sábias palavras do Professor consultado, sem olvidar os conselhos do Papai.

— E daí? — perguntarão.

— Tudo bem! — respondo. O livro foi reescrito de ponta a ponta, afastadas as imperfeições e posto os pontos nos is. É verdade que me custou um grande esforço e a colaboração decidida de alguns amigos, naquilo que lhes consultei.

Agora não o darei mais a qualquer pessoa para opinar ou apreciar, a meu pedido, sobre qualquer aspecto ou controvérsia. Como pode o opinante mostrar-se favorável, poderá também apreciar sob o aspecto crítico, o que certamente arrefecerá o ânimo da autora. Quem quiser dar um palpite sobre meu livro, sugiro a aquisição de um exemplar, contanto que o faça espontaneamente.

— Não estou certa?

Eis a história da concepção desta obra: "A PEQUENA BAILARINA".


A Autora 


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