(366)_CINCO MINUTOS (por José Martiniano de Alencar) [Literatura]


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Title: Cinco minutos Author: José Martiniano de Alencar Release Date: December 29, 2013 [EBook #44540] Language: Portuguese
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    *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste  texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.                                           Rita Farinha (Dezembro 2013)
CINCO MINUTOS J. DE ALENCAR EDIÇÃO ESPECIAL RIO DE JANEIRO Typ. Mont'Alverne--Rua do Ouvidor 82
1894 A D
***
I
É uma historia curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma historia, e não um romance.
Ha mais de dous annos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o omnibus de Andarahy.
Sabe que sou o homem o menos pontual que ha n'este mundo: entre os os meus immensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a _pontualidade_ essa virtude dos reis, e esse mão costume dos Inglezes.
Enthusiasta da liberdade, não posso admittir de modo algum que o homem se escravise ao seu relogio e regule as suas acções pelo movimento de uma pendula.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais omnibus algum; o empregado á quem dirigi-me respondeu:
--Partio ha cinco minutos.
Resignei-me, e esperei pelo omnibus de sete horas.
Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e humida: o céo estava calmo, mas sem estrellas.
Á hora marcada chegou o omnibus, e apressei-me á ir a tomar o meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, afim de ficar livre das conversas monotonas dos recebedores, que de ordinario têm sempre uma anecdota insipida á contar, ou uma queixa á fazer sobre o máo estado dos caminhos.
O canto já estava occupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contacto da seda á vizinhança da casimira ou do panno.
O meu primeiro cuidado foi ver si conseguia descobrir o rosto e as fórmas que se escondiam n'essas nuvens de seda e de rendas.
Era impossivel.
Além de estar escura a noite, um maldito véo cahido de um chapéozinho de palha não me deixava a menor esperança.
Resignei-me, e assentei que o melhor era cuidar de outra cousa.
Já o meu pensamento tinha-se lançado á galope pelo mundo da fantasia, quando de repente foi obrigado á voltar por uma circumstancia bem simples.
Senti no meu braço o contacto suave de um outro braço, que me parecia macio e avelludado como uma folha de rosa.
Quiz recuar, mas não tive animo; deixei-me ficar na mesma posição, e scismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim.
Pouco e pouco fui cedendo áquella attracção irresistivel e reclinando-me insensivelmente: a pressão tornou-se mais forte; senti o seu hombro tocar de leve o meu; e por acaso encontrei uma mãozinha delicada e mimosa que deixou-se apertar á medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha illusão e por este contacto voluptuoso, esqueci-me, á ponto que, sem tino do que fazia, e, favorecido pela obscuridão, passei-lhe a mão pela cintura e cerrei seu talhe delicado.
_Ella_ soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do omnibus, e refugiou-se no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do carro, e, approximando-me d'ella, disse-lhe quasi ao ouvido:
--Perdão!
Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heroica.
--Vou descer; não a incommodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ella ouvisse, inclinei-me para mandar parar.
Mas sentì outra vez a sua mãosinha, que apertava docemente a minha, para impedir-me de sahir.
Está entendido que não resisti, e que deixei-me ficar; ella conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-mè abandonado a mão, que apertava respeitosamente.
De repente veio-me uma idéa. Si fosse feia! si fosse velha! si fosse uma e outra cousa!
Fiquei frio, e comecei á reflectir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permittia o que só se permitte ao homem que se ama, não podia deixar com effeito de ser feia e muito feia.
Não lhe sendo facil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se á este, que de noite e ás cegas lhe proporcionára o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espadua avelludada... Illusão! Era a disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
N'esta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha chegado á uma convicção inabalavel sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentára á principio aproveitando-me da luz furtiva de algum raro lampião acceso: porém ainda d'esta vez foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete e no seu véo, que nem um traço do rosto trahia seu incognito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar, e não se esconde como uma perola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
N'isto ella fez um movimento entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de sandalo exhalou-se.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um effluvio celeste.
Não se admire, minha prima, tenho uma theoria á respeito dos perfumes.
A mulher é uma flôr que se estuda, como a flôr do campo, pelas suas côres, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a côr predilecta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir, com a mesma exactidão de um problema algebrico, si ella é bonita ou feia.
De todos estes indicios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por um segredo da natureza, por uma lei mysteriosa da creação, que não sei explicar.
Porque é que Deos deu o aroma mais delicado á rosa, ao heliotropo, á violeta, ao jasmim, e não á essas flôres sem graça e sem belleza, que só servem para realçar as suas irmãs?
É de certo por esta mesma razão que Deos só dá á mulher linda esse tacto delicado e subtil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma mais perfeito.
Já vê, minha prima, porque esse odor de sandalo foi para mim como uma revelação.
Só uma mulher distincta, uma mulher de sentimento, sabe comprehender toda a poesia d'esse perfume oriental, d'esse _hatchiss_ do olfacto, que nos embala nos sonhos brilhantes das _Mil e uma Noites_, que nos falla da India, da China, da Persia, dos esplendores da Asia e dos mysterios do berço do sol.
O sandalo é o perfume das odaliscas de Stamboul e das houris do propheta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher de Oriente vive com as gottas d'essa essencia divina.
Seu berço é de sandalo; seus collares, suas pulseiras, o seu leque, são de sandalo; e, quando a morte vem quebrar o fio d'essa existencia feliz, é ainda em uma urna de sandalo que o amor guarda as suas cinzas queridas.
Tudo isto passou-me pelo pensamento, como um sonho, emquanto eu aspirava ardentemente a exhalação fascinadora, que foi á pouco e pouco desvanecendo-se.
Era bella!
Tinha toda a certeza; d'esta vez era uma convicção profunda e inabalavel.
Com effeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, si fosse feia, não dava sua mão á beijar á um homem que podia repellil-a quando a conhecesse; não se expunha ao escarneo e ao desprezo.
Era bella!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse; via-a com os olhos da alma, fazia o seu retrato imaginario.
O omnibus parou; uma outra senhora ergueu-se e sahio.
Senti que _sua_ mão apertava a minha; vi uma sombra passar diante de meus olhos no meio do _ruge-ruge_ de um vestido, e quando dei accordo de mim rodava o carro e eu tinha perdido a minha visão.
Resoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quasi imperceptivelmente:
--_Non ti scordar di me_!...
Lancei-me fóra do omnibus; caminhei á direita e á esquerda; andei como um louco até nove horas da noite.
Nada!



II

Quinze dias se passáram depois da minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagancias que fiz.
Fui todos os dias á Andarahy no omnibus das sete horas, para ver si encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros si a conheciam, e não obtive a menor informação.
Estava á braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora.
Quando sahia não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéo de palha que não lhe désse caça, até fazel-o chegar á abordagem..
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desgeitosa, e continuava tristemente meu caminho, atrás d'essa sombra impalpavel, que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um seculo para o pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e não conhece a mulher que ama.
Recostei-me á uma porta, e d'ahi via passar diante de mim uma myriada brilhante e esplendida, pedindo á todos aquelles rostos indifferentes um olhar, um sorriso, que me désse á conhecer aquella que eu procurava.
Assim preoccupado, quasi não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti um leque tocar no meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou:
--_Non ti scordar di me_!...
Voltei-me.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um leque.
--Será ella, meu Deos? pensei eu horrorisado.
E, por mais que fizesse, meus olhos não se podiam destacar d'aquelle rosto cheio de rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia attrahir a sympatia; mas n'aquelle momento essa belleza moral, que illuminava aquella physionomia intelligente, pareceu-me horrível e até repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhal-a bella como um anjo, e por fim encontrar uma velha de cabellos brancos, uma velha _coquette_ e namoradeira!
Não, era possivel! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vêl-a.
Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo.
A velha fallou, e na sua voz eu reconheci, apezar de tudo, apezar de mim mesmo, o timbre doce e avelludado que ouvira duas vezes.
Em face da evidencia não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha beijado sua mão enrugada com delirio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança.
Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas fiquei com tal tedio e aborrecimento de mim mesmo que não posso exprimir.
Que peripecias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama, tão simples e obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.
--Ella não gosta de bailes.
--Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade!
--Que quer! não acha prazer n'estas festas ruidosas, e n'isto mostra bem que é minha filha.
A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhança extraordinaria da voz. Agarrei-me á esta sombra, como um homem que caminha no escuro.
Resolvi-me á seguir a velha toda a noite, até que ella se encontrasse com sua filha: desde este momento era o meu fanal, a minha estrella polar.
A senhora e o seu cavalheiro entráram na saleta da escada. Separado d'ella um instante pela multidão, ia seguil-a.
N'isto ouço uma voz alegre dizer da saleta:
-Vamos, mamãi!
Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto n'um largo _bornou_ de seda branca, que desappareceu ligeiramente na escada.
Atravessei a saleta tão depressa como me permittio a multidão, e, pisando callos, dando encontrões á direita e á esquerda, cheguei emfim á porta da sahida.
O meu vestido preto sumio-se pela portinhola de um _coupé_, que partio á trote largo.
Voltei ao baile desanimado; á minha unica esperança era a velha; por ella podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida, indagar o seu nome e a sua morada, acabar emfim com este enigma, que me matava de emoções violentas e contrarias.
Indaguei d'ella.
Mas como era possivel designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais ou menos a idade?
Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham olhado para ellas.
Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o impossivel.
De duas vezes que a minha visão me tinha apparecido, só me restava uma lembrança, um perfume e uma palavra!
Nem siquer um nome!
Á todo momento parecia-me ouvir na briza da noite essa phrase do _Trovador_, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma historia.
Desde então não se representava uma só vez esta opera em que eu não fosse ao theatro, ao menos para ter o prazer de ouvil-a repetir.
Á principio, por uma intuição natural, julguei que _ella_ devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia tambem ir sempre ao theatro.
O meu binoculo examinava todos os camarotes com uma attenção meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma d'ellas me fazia palpitar o coração.
Entrando uma vez no theatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mãi, a minha estrella, o fio de Ariadne que me podia guiar n'este labyrintho de duvidas.
A velha estava só na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma palavra com alguem, sentado no fundo.
Senti uma alegria ineffavel.
O camarote proximo estava vazio; perdi quasi todo o espectaculo á procurar o cambista incumbido de vendêl-o. Por fim achei-o, e subi de um pulo as tres escadas.
O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei.
Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapéozinho de palha com um véo preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa á quem pertencia.
Mas eu tinha adivinhado que era _ella_; e sentia um prazer indefinivel em olhar aquellas rendas e fitas, que me impediam de conhecêl-a, mas que ao menos lhe pertenciam.
Uma das fitas do chapéo tinha cahido do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto, não pude soster-me e beijei-a á furto.
Representava-se a _Traviata_, e era o ultimo acto; o espectaculo ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.
Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cahir o binoculo, fiz um barulho insupportavel, para ver si _ella_ voltava o rosto.
A platéa pedio silencio; todos os olhos procuráram conhecer a causa do rumor; porém _ella_ não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a columna, em uma languida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da musica.
Tomei um partido.
Encostei-me á mesma columna, e em voz baixa balbuciei estas palavras:
--Não me esqueço!
Estremeceu e, abaixando rapidamente o véo, conchegou ainda mais o largo _bornou_ de setim branco.
Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde.
Tive então um movimento de despeito e quasi de raiva; depois de um mez que eu guardava a maior fidelidade á sua sombra, _ella_ me recebia assim friamente.
Revoltei-me.
--Comprehendo agora, disse eu em voz baixa e como fallando á um amigo que estivesse á meu lado, comprehendo porque ella me foge, porque conserva esse mysterio; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma comedia, em que eu faço o papel do amante ridiculo. Realmente é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germen de um amor profundo; alimental-o de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação pelo mysterio; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma illusão, passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostral-o á suas amigas como uma victima immolada aos seus caprichos, e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito!
Emquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda aria final da _Traviata_, interrompida por ligeiros accessos de uma tosse secca.
_Ella_ tinha curvada a cabeça, e não sei si ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espaduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de impaciencia.
O espectaculo terminou, as pessoas do camarote sahiram, e _ella_, levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente.
Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma cousa, tornou á entrar no camarote, e estendeu-me a mão.
--Não saberá nunca o que me fez soffrer, disse-me com a voz tremula.
Não pude ver-lhe o rosto; fugio, deixando-me o seu lenço impregnado d'esse mesmo perfume de sandalo e todo molhado de lagrimas ainda quentes.
Quiz seguil-a; mas ella fez um gesto tão supplicante que não tive animo de desobedecer-lhe.
Estava como d'antes; não a conhecia, não sabia nada á seu respeito; porém ao menos possuia alguma cousa d'ella; o seu lenço era para mim uma reliquia sagrada.
Mas as lagrimas? Aquelle soffrimento de que ella fallava? O que queria dizer tudo isto?
Não comprendia; si eu tinha sido injusto, era uma razão para não continuar á esconder-se de mim. Que queria dizer este mysterio, que parecia obrigada á conservar?
Todas estas perguntas e as conjecturas á que ellas davam lugar não me deixáram dormir.
Passei uma noite de vigilia á fazer supposições, cada qual mais desarrazoada.



III

Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta.
Antes de abril-a conheci que era d'ella, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma aureola.
Eis o que dizia:

     «Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher póde escarnecer de um      nobre coração como o seu.
     Si me occulto, si fujo, é porque ha uma fatalidade que á isto me      obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrificio, porque o      amo!
     Mas não devo ser egoista e trocar sua felicidade por um amor      desgraçado.
     Esqueça-me.
                                                  C.»

Essa assignatura era a mesma lettra que marcava o seu lenço, e á qual eu desde a vespera pedia debalde seu nome!
Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apezar da delicadeza de sentimento que parecia ter dictado suas palavras, o que para mim tornava-se bem claro é que ella continuava á fugir-me.
Fosse qual fosse esse motivo que ella chamava uma fatalidade, e que eu suppunha ser apenas escrupulo, sinão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecel-a.
Reflecti então seriamente sobre a extravagancia da minha paixão, e assentei que com effeito precisava tomar uma resolução decidida.
Não era possivel que continuasse á correr atrás de um fantasma que esvaecia-se quando ia tocal-o.
Aos grandes males os grandes remedios, como diz Hippocrates. Resolvi fazer uma viagem.
Mandei sellar o meu cavallo, metti alguma roupa em um sacco de viagem, embrulhei-me no meu capote e sahi, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.
Não sabia para onde iria. O meu cavallo levou-me para o Engenho-Velho, e eu d'ahi encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo molhado e fatigado pelos máos caminhos.
Si algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remedio soberano e talvez o unico efficaz.
Deram-me um excellente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.
Quando accordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.
Uma bella manhã, fresca e rociada das gottas do orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.
O aspecto d'esta natureza quasi virgem, esse céo brilhante, essa luz esplendida cahindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espirito.
Fiquei alegre, o que ha muito tempo não me succedia.
O meu hospede, um Inglez franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhal-o á caça; gastámos todo o dia á correr atrás de duas ou tres marrecas e á bater as margens da Restinga.
Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estupida quanto póde ser; dormindo, caçando e jogando o bilhar.
Na tarde do decimo dia, quando já me suppunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e assetinada, fiquei triste de repente.
Não sei que caminho tomáram as minhas idéas; o caso é que d'ahi á pouco descia a cerra no meu cavallo, lamentando esses nove dias, que talvez tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.
Accusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.
Que importava que ella me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ella, fraca mulher, não podia lutar?
Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoista, cobarde, irreflectido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavallo, que me levára á Tijuca, e o meu hospede, cuja amabilidade alli me havia demorado.
Com esta disposição de espirito cheguei á cidade, mudei de trajo, e ia sahir, quando o meu moleque deu-me uma carta.
Era d'ella.
Causou-me uma sorpresa misturada de alegria e de remorso:

     «Meu amigo.
     Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor á sua felicidade;      mas ao menos deixe-me o consolo de amal-o.
     Ha dous dias que espero debalde vêl-o passar, e acompanhal-o de      longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que      ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração      amigo.
     Parto hoje para Petropolis, d'onde voltarei breve; não lhe peço      que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma      sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.
     Entretanto, eu desejava vêl-o ainda uma vez, apertar a sua mão e      dizer-lhe adeus para sempre.
                                                  C.»

A carta tinha a data de 3; nós estavamos a 10; havia oito dias que ella partira para Petropolis e que me esperava.
No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da bahia, tão pittoresca, tão agradavel, e ainda tão pouco apreciada.
Mas então a magestade d'essas montanhas de granito, a poesia d'esse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a bahia, nada d'isto me preoccupava.
Só tinha uma idéa--chegar; e o vapor caminhava menos rapido do que meu pensamento.
Durante a viagem pensava n'essa circumstancia que a sua carta me revelára, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver si adivinhava aquella onde ella morava, e d'onde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.
Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, á ponto de merecer que a senhora, minha prima, me appellidasse de Judêo Errante, este trabalho era improficuo.
Quando cheguei á Petropolis eram cinco horas da tarde; estava quasi noite.
Entrei n'esse hotel suisso, ao qual nunca mais voltei, e emquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.
--Têm subido estes dias muitas familias? perguntei ao criado.
--Não, senhor.
--Mas ha cousa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?
--Não estou certo.
--Pois indague, que preciso saber e já; isto o ajudará á obter informações.
A physionomia sizuda do criado expandio-se ao tinir da moeda, e a lingua adquiriu a sua elasticidade natural.
--Talvez o senhor queira fallar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha.
--É isso mesmo.
--A moça parece doente; nunca a vejo sahir.
--Onde está morando?
--Aqui perto, na rua de...
--Não conheço as ruas de Petropolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me a casa.
--Sim, senhor.
O criado seguio-me, e tomámos por uma das ruas agrestes da cidade allemã.



IV

A noite estava escura.
Era uma d'essas noites de Petropolis, envoltas de nevoeiro e cerração.
Caminhavamos mais pelo tacto do que pela vista, difficilmente distinguiamos os objectos á uma pequena distancia; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas.
Em alguns minutos chegámos em face de um pequeno edificio construido á alguns passos do alinhamento, e cujas janellas estavam esclarecidas por uma luz interior.
--É alli.
--Obrigado.
O criado voltou, e eu fiquei junto d'essa casa, sem saber o que ia fazer.
A idéa de que estava perto d'ella, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ella pisára, fazia-me feliz.
É cousa singular, minha prima! O amor, que é insaciavel e exigente, e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher póde dar, que deseja o impossivel, ás vezes contenta-se com um simples gozo d'alma, com uma d'essas emoções delicadas, com um d'esses _nadas_, dos quaes o coração faz um mundo novo e desconhecido.
Não pense, porém, que eu fui á Petropolis só para contemplar com enlevo as janellas de um _chalet_; não: ao passo que sentia esse prazer, reflectia no meio de vêl-a e de fallar-lhe.
Mas como?...
Si soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginação! Si visse a elaboração tenaz á que se entregava o meu espirito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava alli e a esperava!
Por fim achei um; si não era o melhor, era o mais prompto.
Desde que chegára, tinha ouvido uns preludios de piano, mas tão debeis que pareciam antes tirados por uma mão distrahida que roçava o teclado do que por uma pessoa que tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bella musica de Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquella linda _romanza_; os que me ouvissem tomar-me-hiam por algum furioso; mas ella me comprehenderia.
E de facto, quando eu acabei de estropeiar esse trecho magnifico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emmudecido, soltou um trilho brilhante e sonoro, que acordou os echos adormecidos no silencio da noite.
Depois d'aquella cascata de sons magestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia, do seio d'aquelle turbilhão de notas, que se cruzavam, deslisou plangente, suave e melancolica, uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi.
Era ella quem cantava!
Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angustia de que ella repassou aquella phrase de despedida:

    Non ti scordar di me     Addio!...

Partia-me a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janellas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permittiram ver o que se passava na sala.
Sentei-me sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D***; estava resolvido á passar alli a noite ao relento, olhando para aquella casa, e alimentando a esperança de que ella viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrificio.
Não me enganei.
Havia meia hora que a luz da sala tinha desapparecido e que toda a casa parecia dormir, quando abrio-se uma das portas do jardim, e eu vi ou antes presenti a sua sombra na sala.
Recebeu-me sem sorpresa, sem temor; naturalmente e como si eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de que ás vezes costumam cercal-o.
--Eu sabia que sempre havia de vir, disse-me ella.
--Oh! não me culpe! si soubesse!
--Eu culpal-o? Quando mesmo não viesse, não tinha direito de queixar-me.
--Porque não me ama!
--Pensa isto? disse-me com uma voz cheia de lagrimas.
--Não! não!... Perdôe!
--Perdôo-lhe, meu amigo, como já lhe perdoei uma vez; julga que lhe fujo, que me occulto, porque não o amo, e entretanto não sabe que a maior felicidade para mim seria poder dar-lhe a minha vida.
--Mas então porque esse mysterio?
--Esse mysterio, bem sabe, não é uma cousa creada por mim, e sim pelo acaso; si o conservo é porque, meu amigo... não deve amar.
--Não a devo amar! Mas eu amo-a!...
Recostou a cabeça no meu hombro, e eu senti uma lagrima cahir sobre meu seio.
Estava tão perturbado, tão commovido d'essa situação incomprehensivel, que senti-me vacilar, e deixei-me cahir sobre o sofá.
Ella sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um pouco mais calma:
--Diz que me ama!
--Juro-lhe!
--Não se illude talvez?
--Si a vida não é uma illusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora é você, ou antes a sua sombra.
--Muitas vezes toma-se um capricho por amor; não conhece de mim, como diz, sinão a minha sombra!...
--Que me importa?...
--E si eu fosse feia? disse ella rindo.
--É bella como um anjo! Tenho toda a certeza.
--Quem sabe?
--Pois bem; convença-me, disse eu passando-lhe o braço pela cintura e procurando leval-a para uma sala vizinha, d'onde filtravam os raios de uma luz.
Desprehendeu-se do meu braço.
A sua voz tornou-se grave e triste.
--Escute, meu amigo; fallemos seriamente. Diz que me ama; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dissesse. As almas como as nossas quando se encontram se reconhecem e se comprehendem. Mas ainda é tempo; não julga que mais vale conservar uma recordação do que entregar-se á um amor sem esperança e sem futuro?...
--Não, mil vezes não! Não entendo o que quer dizer; o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!...
--Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a sua alma ama-se de uma só vez.
--Então porque exige de mim um sacrificio que sabe ser impossivel?
--Porque, disse ella com exaltação, porque, si ha uma felicidade indefinivel em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existencia, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a flôr da idade até a velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas magoas, revendo-se uma na outra até o momento em que batem as azas e vão abrigar-se no seio de Deos; deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma d'essas duas almas irmãs fugir d'este mundo, e a outra, viuva e triste, fôr condemnada á levar sempre no seu seio uma idéa de morte; á trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bella mocidade; á fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um tumulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrivel!...
A exaltação com que fallava tinha-se tornado uma especie de delirio; sua voz, sempre tão doce e avelludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração.
Ella cahio sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um accesso de tosse.



V

Assim ficámos muito tempo immoveis, ella com a fronte apoiada sobre meu peito, eu sob a impressão triste de suas palavras.
Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a serenidade, disse-me em tom doce e melancolico:
--Não pensa que melhor é esquecer do que amar assim?
--Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo immenso e um grande consolo para a desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã, não; ahi ha um sentimento que vive, apezar da morte, apezar do tempo. É sim esse vacuo do coração que não tem uma affeição no mundo, e que passa como um estranho por entre os prazeres que o cercam.
--Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada!...
--E me pedia que a esquecesse!...
--Não! não! Ama-me: quero que me ame. Ao menos...
--Não me fugirá mais?
--Não.
--E me deixará ver aquella que eu amo, e que não conheço? perguntei sorrindo.
--Deseja?
--Supplico-lhe!
--Não sou eu sua?...
Lancei-me para a saleta onde havia luz, e colloquei o lampião sobre a mesa do gabinete em que estavamos.
Para mim, minha prima, era um momento solemne; toda essa paixão violenta, incomprehensivel, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar.
E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa visão poetica de minha imaginação, essa creação que resumia todos os typos.
Foi, portanto, com uma emoção extraordinaria que, depois de collocar a luz, voltei-me.
Ah!...
Eu sabia que era bella; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deos creára.
Ella olhava-me e sorria.
Era um ligeiro sorriso, uma flôr que desfolhava-se nos seus labios, um reflexo que illuminava o seu lindo rosto.
Seus grandes olhos negros fitavam em mim um d'esses olhares languidos e avelludados que afagam os seios d'alma.
Um annel de cabellos negros brincava-lhe sobre o hombro, fazendo sobresahir a alvura de seu collo gracioso.
Tudo quanto a arte tem sonhado de bello e de voluptuoso desenhava-se n'aquellas formas soberbas, n'aquelles contornos harmoniosos que se destacavam entre as ondas de cambraia de seu ropão branco.
Vi tudo isto de um só olhar, rapido, ardente e fascinado; depois fui ajoelhar-me diante d'ella, e esqueci-me á contemplal-a.
Ella me sorria sempre, e se deixava admirar.
Por fim tomou-me a cabeça entre as mãos, e seus labios fecháram-me os olhos com um beijo.
--Ama-me, disse.
O sonho esvaeceu-se.
A porta da sala fechou-se sobre ella; tinha-me fugido.
Voltei ao hotel.
Abri a minha janella, e sentei-me ao relento.
A brisa da noite trazia-me de vez em quando um aroma de plantas agrestes que me causava intimo prazer.
Fazia-me lembrar da vida campestre, d'essa existencia doce e tranquilla que se passa longe das cidades, quasi no seio da natureza.
Pensava como seria feliz vivendo com ella em algum canto isolado, onde pudessemos abrigar o nosso amor em um leito de flôres e de relva.
Fazia na imaginação um idyllio encantador, e sentia-me tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palacio da terra.
Ella me amava.
Essa só idéa embellezava tudo para mim; a noite escura de Petropolis parecia-me poetica e o murmurejar triste das aguas do canal tornava-se-me agradavel.
Uma cousa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro, uma nuvem escura que toldava o céo da minha noite de amor.
Lembrava-me d'aquellas palavras tão cheias de angustia e tão sentidas, que pareciam explicar a causa de sua reserva para commigo: havia n'isto um quer que seja que eu não comprehendia.
Mas esta lembrança desapparecia logo sob a impressão de seu sorriso, que eu tinha em minh'alma, de seu olhar, que eu guardava no coração, e de seos labios, cujo contacto ainda sentia.
Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio do sol, alegre e travesso, veio bater-me nas palpebras e dar-me o _bom dia_.
O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava ainda fechada.
Eram oito horas.
Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciencia; voltando ao hotel, o criado disse-me terem trazido um objecto que recommendáram me fosse entregue logo.
Em Petropolis não conhecia ninguem; devia ser d'ella.
Corri ao meu quarto, e achei sobre a mesa uma caixinha de páo setim; na tampa havia duas lettras de tartaruga incrustada:--C. L.
A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço á mim: dispuz-me á abrir a caixa com a mão tremula e tomado por um triste presentimento.
Parecia-me que n'aquelle cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor, toda a minha felicidade.
Abri.
Continha o seu retrato, alguns fios de cabello e duas folhas de papel escriptas por ella e que li de sorpresa em sorpresa.



VI

Eis o que ella me dizia:

     «Devo-te uma explicação, meu amigo.
     Esta explicação é a historia de minha vida, breve historia, da      qual escreveste a mais bella pagina.
     Cinco mezes antes do nosso primeiro encontro, completava eu os      meus dezeseis annos, a vida começava á sorrir-me.
     A educação rigorosa que me dera minha mãi me conservára menina até      aquella idade, e foi só quando ella julgou conveniente correr o      véo que occultava o mundo aos meus olhos que eu perdi as minhas      idéas de infancia e as minhas innocentes illusões.
     A primeira vez que fui á um baile fiquei deslumbrada no meio      d'aquelle turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de      mim sob uma atmosphera de luz, de musica, de perfumes.
     Tudo me causava admiração; o abandono com que as mulheres se      entregavam a seu par de valsa, o sorriso constante e sem expressão      que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixal-o á      sahida, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um thema      banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer      o enthusiasmo com que tinha acolhido a noticia que minha mãi me      dera de minha entrada nos salões.
     Estavas n'esse baile; foi a primeira vez que te vi.
     Reparei que n'essa multidão alegre e ruidosa tu só não dansavas      nem galanteavas, passando pelo salão como um espectador mudo e      indifferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e      só via _toilettes_.
     Comprehendi-te, e durante muito tempo segui-te com os olhos: ainda      hoje me lembro de teus menores gestos, da expressão de teu rosto e      do sorriso de fina ironia que ás vezes fugia-te pelos labios.
     Foi a unica recordação que trouxe d'essa noite, e quando adormeci,      os meus doces sonhos de infancia, que, apezar do baile, vieram      de novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram      interrompidos um instante por tua imagem, que me sorria.
     No dia seguinte reatei o fio de minha existencia, feliz,      tranquilla e descuidosa, como costuma ser a existencia de uma moça      aos dezeseis annos.
     Algum tempo depois fui á outros bailes e ao theatro, porque minha      mãi, que guardára a minha infancia como um avaro esconde seu      thesouro, queria fazer brilhar a minha mocidade.
     Quando cedia a seu pedido e me ia a apromptar, emquanto preparava      o meu simples trajo, murmurava:
     --Talvez elle esteja.
     E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que      procurasse parecer bella, para te merecer um primeiro olhar.
     Ultimamente era eu quem, cedendo á um sentimento que não sabia      explicar, pedia á minha mãi para irmos á um divertimento, só na      esperança de encontrar-te.
     Nem suspeitavas então que entre todos aquelles vultos      indifferentes havia um olhar que te seguia sempre e um coração      que adivinhava teus pensamentos, que expandia-se quando te via      sorrir e contrahia-se quando uma sombra de melancolia anuviava teu      semblante.
     Si pronunciavam o teu nome diante de mim corava, e na minha      perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou      dentro de minh'alma, onde eu bem sabia que elle estava escripto.
     E entretanto nem siquer ainda me tinhas visto; si teus olhos      haviam passado alguma vez por mim, tinha sido em um d'esses      momentos em que a luz se volta para o intimo, e se olha mas não se      vê.
     Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então      não sei o que me dizia que era impossivel não me amares.
     O acaso deu-se, mas quando a minha existencia já se tinha      completamente transformado.
     Ao sahir de um d'esses bailes apanhei uma pequena constipação, de      que não fiz caso. Minha mãi teimava que eu estava doente, e eu      achava-me um pouco pallida e sentia ás vezes um ligeiro calafrio,      que eu curava sentando-me ao piano e tocando alguma musica de      bravura.
     Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e os      labios ardentes, a respiração era difficil, e ao menor esforço      humedecia-se-me a pelle com uma transpiração que me parecia gelada.
     Atirei-me sobre um sofá, e com a cabeça recostada ao collo de      minha mãi cahi em um lethargo que não sei quanto tempo durou.      Lembro-me sómente que, no momento mesmo em que ia despertando      d'essa somnolencia que se apoderára de mim, vi minha mãi sentada      á cabeceira de meu leito chorando, e um homem dizia-lhe algumas      palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho.
     --Não desespere, minha senhora; a sciencia não é infallivel, nem      os meus diagnosticos são sentenças irrevogaveis. Póde ser que a      natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não perder tempo.
     O homem partio.
     Não tinha comprehendido suas palavras, ás quaes não ligava o menor      sentido.
     Passado um instante, ergui tranquillamente os olhos para minha      mãi, que escondeu o lenço e tragou em silencio o pranto e os      soluços.
     --Chora, mamãi?
     --Não, minha filha... não... não é nada.
     --Mas está com os olhos cheios de lagrimas!... disse eu assustada.
     --Ah! sim!... uma noticia triste que me contáram ha pouco... sobre      uma pessoa... que tu não conheces.
     --Quem é este senhor que estava aqui?
     --É o Dr. Valladão, que te veio visitar.
     --Então eu estou muito doente, boa mamãi?
     --Não, minha filha, elle assegurou que não tens nada; é apenas um      incommodo nervoso.
     E minha querida mãi, não podendo mais conter as lagrimas que lhe      saltavam dos olhos, fugio pretextando uma ordem á dar.
     Então, á medida que a minha intelligencia ia sahindo do lethargo,      comecei á reflectir sobre o que se tinha passado.
     --Aquelle desmaio tão longo, aquellas palavras que eu ouvira ainda      entre as nevoas de um somno agitado, as lagrimas de minha mãi e      a sua repentina afflicção, o tom condoìdo com que o medico lhe      fallára...
     Um raio de luz esclareceu de repente o meu espirito.
     Estava desenganada.
     O poder da sciencia, o olhar profundo, seguro, infallivel, d'esse      homem, que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto      em meu seio um atomo imperceptivel.
     E esse atomo era o verme que devia destruir as fontes da vida,      apezar dos meus dezeseis annos, apezar de minha organisação,      apezar de minha belleza e dos meus sonhos de felicidade!»
     Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as      lagrimas que me inundavam as faces e cahiam sobre o papel.
     Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me      fugia, por que se ócultava, por que ainda na vespera dizia que se      tinha imposto o sacrificio de nunca ser amada por mim.
     Que sublime anegação, minha prima! E como eu me sentia pequeno e      mesquinho á vista d'esse amor tão nobre!»



VII

Continuei á ler:

     «Sim, meu amigo!...
     Estava condemnada á morrer; estava atacada d'essa molestia fatal e      traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no meio dos prazeres e      dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao tumulo, depois de      ter escarnecido da natureza, transfigurando as suas mais bellas      creações em mumias animadas.
     É impossivel descrever-te o que se passou então em mim: foi um      desespero mudo e concentrado, que me prostrou em uma atonia      profunda; foi uma angustia pungente e cruel.
     As rosas da minha vida apenas se entreabriam, e já eram bafejadas      por um halito infectado; já tinham no seio o germen da morte que      devia fazel-as murchar!
     Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro      amor, que nem siquer ainda tinha colhido o primeiro sorriso,      este horizonte, que ha pouco me parecia tão brilhante; tudo isto      era uma visão que ia sumir-se, uma luz que lampejava prestes á      extinguir-se.
     Foi preciso um esforço sobrehumano para esconder de minha mãi a      certeza que eu tinha sobre o meu estado, e para gracejar dos seus      temores, que eu chamava imaginarios.
     Boa mãi! Desde então só viveu para consagrar-se exclusivamente á      sua filha, para envolvel-a com esse desvelo e essa protecção que      Deos deu ao coração materno, para abrigar-me com suas preces,      sua solicitude e seus carinhos, para lutar á força de amor e de      dedicação contra o destino.
     Logo no dia seguinte fomos para Andarahy, onde ella alugára uma      chacara, e ahi, graças á seus cuidados, adquiri tanta saude, tanta      força, que me julgaria boa si não fosse a sentença fatal que      pesava sobre mim.
     Que thesouro de sentimento e delicadeza que é um coração de mãi,      meu amigo! Que tacto delicado, que sensibilidade apurada, possue      esse amor sublime!
     Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era      obrigada á agasalhar-me, si visses como ella presentia as rajadas      de um vento frio antes que elle agitasse os renovos dos cedros do      jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a primeira gotta      humedecesse a lage do nosso terraço!
     Fazia tudo por distrahir-me; brincava commigo como uma camarada      de collegio; achava prazer nas menores cousas para excitar-me á      imital-a; tornava-se menina e obrigava-me á ter caprichos.
     Emfim, meu amigo, si fosse á dizer-te tudo, escreveria um livro, e      esse livro deves ter lido no coração de tua mãi, porque todas as      mãis se parecem.
     Ao cabo de um mez tinha recobrado a saude para todos, excepto para      mim, que ás vezes sentia um quer que seja como uma contracção, que      não era dôr, mas me dizia que o mal estava alli, e dormia apenas.
     Foi n'esta occasião que te encontrei no omnibus de Andarahy;      quando entravas a luz do lampeão illuminou-te o rosto e eu      reconheci-te.
     Faze idéa que emoção sentiria quando te sentaste junto de mim.
     O mais tu sabes; eu te amava, e era tão feliz de ter-te á meu      lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como te devia      parecer ridicula uma mulher que, sem te conhecer, te permittia      tanto.
     Quando nos separámos, arrependi-me do que tinha feito.
     Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condemnar-te á      um amor infeliz e obrigar-te á associar tua vida á uma existencia      triste, que talvez não te podesse dar sinão os tormentos de seu      longo martyrio?!
     Eu te amava; mas, já que Deos não me tinha concedido a graça de      ser tua companheira n'este mundo, não devia ir roubar ao teu      lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém menos      dedicada, teria de occupar.
     Continuei á amar-te, mas impuz-me á mim mesma o sacrificio de      nunca ser amada por ti.
     Vês, meu amigo, que não era egoista e preferia a tua á minha      felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.
     Aproveitei o mysterio do nosso primeiro encontro, e esperei que      alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e quebrassem o      unico e bem fragil laço que te prendia á mim.
     Deus não quiz que acontecesse assim: vendo-te só em um baile, tão      triste, tão pensativo, procurando um ser invisivel, uma sombra,      e querendo descobrir os seus vestigios em algum dos rostos que      passavam diante de ti, senti um prazer immenso.
     Conheci que tu me amavas; e, perdôa, fiquei orgulhosa d'essa      paixão ardente, que uma só palavra minha havia creado, d'esse      poder do meu amor, que, por uma força de atracção inexplicavel,      tinha-te ligado á minha sombra.
     Não pude resistir.
     Approximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de      ver-me; foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso      amor, e que depois do primeiro encontro era, como ainda hoje, a      minha prece de todas as noites.
     Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de      minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deos,      chamo a tua imagem para pedir-te que não _te esqueças de mim_.
     Quando tu te voltaste ao som da minha voz eu tinha entrado no      _toilette_; e pouco depois sahi d'esse baile, onde apenas acabava      de entrar, tremendo da minha imprudencia, mas alegre e feliz por      te ter visto ainda uma vez.
     Deves agora comprehender o que me fizeste soffrer no theatro      quando me dirigias aquella accusação tão injusta, no momento mesmo      em que a Charton cantava a aria da _Traviata_.
     Não sei como não me trahi n'aquelle momento e não te disse tudo; o      teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruil-o      para satisfação de meu amor-proprio offendido.
     No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trahir, pude ao menos      rehabilitar-me na tua estima; doia-me muito que, ainda mesmo não      me conhecendo, tivesses sobre mim uma idéa tão injusta e tão falsa.
     Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro      encontro tinhamos voltado á cidade, e eu via-te passar todos      os dias diante de minha janella, quando fazias o teu passeio      costumado á Gloria.
     Por detrás das cortinas seguia-te com o olhar, até que      desapparecias no fim da rua, e este prazer, rapido como era,      alimentava o meu amor, habituado á viver de tão pouco.
     Depois de minha carta tu deixaste de passar dous dias; estava eu á      partir para aqui, d'onde devia voltar unicamente para embarcar no      paquete inglez.
     Minha mãi, incansavel nos seus desvelos, quer levar-me á Europa e      fazer-me viajar pela Italia, pela Grecia, por todos os paizes de      um clima doce.
     Diz ella que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e      cultivar o meu espirito; mas eu sei que essa viagem é sua unica      esperança, que não podendo nada contra minha enfermidade, quer ao      menos disputar-lhe sua victima durante mais algum tempo.
     Julga que fazendo-me viajar sempre me dará mais alguns dias de      existencia, como si estes sobejos de vida valessem alguma cousa      para quem já perdeu sua mocidade e seu futuro.
     Quando ia embarcar para aqui lembrei-me que talvez não te visse      mais, e diante d'essa derradeira provança succumbi. Ao menos o      consolo de dizer-te adeos!...
     Era o ultimo!
     Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas tinha uma      quasi certeza de que havias de vir.
     Não me enganei.
     Vieste, e toda minha resolução, toda minha coragem cedeu, porque,      sombra ou mulher, conheci que me amavas como eu te amo.
     O mal estava feito.
     Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me tens, que      reflictas no que te vou dizer, mas que reflictas com calma e      tranquillidade.
     Para isto parti hoje para Petropolis sem prevenir-te, e colloquei      entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distancia de      muitas leguas.
     Desejo que não procedas precipitadamente, e que, antes de dizer-me      uma palavra, tenhas medido todo o alcance que ella deve ter sobre      teu futuro.
     Sabes o meu destino, sabes que sou uma victima cuja hora está      marcada, e que todo o meu amor, immenso, profundo, não te póde dar      talvez dentro em bem pouco sinão o sorriso contrahido pela tosse,      o olhar desvairado pela febre e caricias roubadas aos soffrimentos.
     É triste; e não deves immolar assim tua bella mocidade, que ainda      te reserva tantas venturas e talvez um amor como o que eu te      consagro.
     Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabellos e minha historia:      guarda-os como uma lembrança, e pensa algumas vezes em mim; beija      esta folha muda, onde os meus labios deixáram-te o adeos extremo.
     Entretanto, meu amigo, si, como tu dizias hontem, a felicidade é      amar e sentir-se amado; si te achas com forças de partilhar esta      curta existencia, estes poucos dias que me restam á passar sobre      a terra, si me queres dar esse consolo supremo, unico que ainda      embellezaria minha vida, vem!
     Sim, vem! iremos pedir ao bello céo da Italia mais alguns dias de      vida para nosso amor; iremos onde tu quizeres, ou onde nos levar a      Providencia.
     Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados      das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protector de Deos, á      sombra dos cuidados de nossa mãi, viveremos tanto um do outro,      encheremos de tanta affeição os nossos dias, as nossas horas,      os nossos instantes, que, por curta que seja minha existencia,      teremos vivido por cada minuto seculos de amor e de felicidade.
     Eu espero; mas temo.
     Espero-te como a flôr desfallecida espera o raio do sol que deve      aquecel-a, a gotta de orvalho que póde animal-a, o halito da briza      que vem bafejal-a. Porque para mim o unico céo que hoje me sorri      são teus olhos, o calor que póde me fazer viver é o do teu seio.
     Entretanto temo, temo por ti, e quasi peço á Deos que te inspire e      te salve de um sacrificio talvez inutil!
     Adeos para sempre, ou até amanhã!
                                             Carlota»



VIII

Devorei toda esta carta de um lanço de olhos.
Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me á seus pés, e receber como uma benção do céo esse amor sublime e santo.
Como sua mãi, lutaria contra o destino, cercal-a-hia de tanto affecto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bella e tão tranquilla, prenderia tanto sua alma á terra, que lhe seria impossivel deixal-a.
Crearia para ella com o meu coração um mundo novo, sem as miserias e as lagrimas d'este mundo em que vivemos; um mundo só de ventura, onde a dôr e o soffrimento não pudessem penetrar.
Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto de terra ainda puro do halito do homem, onde a natureza virgem conservaria o perfume dos primeiros tempos da creação e o contacto das mãos de Deos quando a formára.
Ahi era impossivel que o ar não désse vida; que o raio do sol não viesse impregnado de um atomo de fogo celeste; que a agua, as arvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto vigor, não inoculassem na creatura a vitalidade poderosa da natureza no seu primitivo esplendor.
Iriamos, pois, á uma d'essas solidões desconhecidas; o mundo abria-se diante de nós, e eu sentia-me com bastante coragem para levar o meu thesouro além dos mares e das montanhas, até achar um retiro onde escondesse a nossa felicidade.
N'esses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria siquer vida bastanto para duas creaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, afim de poderem elevar á Deos, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ella dava-me vinte e quatro horas para reflectir, e eu não queria nem um minuto, nem um segundo.
Que me importavam o meu futuro e a minha existencia, si eu os sacrificaria de bom grado para dar-lhe mais um dia de vida.
Todas estas idéas, minha prima, cruzavam-se no meu espirito rapidas e confusas, emquanto eu fechava na caixinha de páo-setim os objectos preciosos que ella encerrava, copiava na minha carteira a sua morada, escripta no fim da carta, e atravessava o espaço que me separava da porta do hotel.
Ahi encontrei o criado da vespera.
--Á que horas parte a barca da Estrella?
--Ao meio-dia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro leguas que me separavam d'aquelle porto.
Lancei os olhos em torno de mim com uma especie de desvario.
Não tinha um throno, como Ricardo III, para offerecer em troca de um cavallo; mas tinha a realeza do nosso seculo, tinha dinheiro.
Á dous passos da porta do hotel estava um cavallo, que o seu dono tinha pela redea.
--Compro-lhe este cavallo, disse eu caminhando para elle, sem mesmo perder tempo em comprimental-o.
--Não pretendia vendêl-o, respondeu-me o homem cortezmente; mas, si o senhor está disposto á dar o preço que elle vale...
--Não questiono sobre preço; compro-lhe o cavallo arreiado como está.
O sujeito olhou-me admirado; porque, á fallar a verdade os arreios nada valiam.
Quanto á mim, já tinha-lhe tomado as redeas da mão; e, sentado no sellim, esperava que me dissesse quanto tinha de pagar-lhe.
--Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavallo para ganhal-a.
Isto deu-lhe á comprehender a singularidade do meu acto e a pressa que eu tinha: recebeu sorrindo o preço do seu animal, e disse, saudando-me com a mão de longe, porque já eu dobrava a rua:
--Estimo que ganhe a aposta; o animal é excellente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito commigo mesmo, ou antes com a minha razão, a qual me dizia que era impossivel apanhar a barca, e que eu fazia uma extravagancia sem necessidade, pois bastava ter paciencia por vinte e quatro horas.
Mas o amor não comprehende esses calculos e esses raciocinios, proprios da fraqueza humana; creado com uma particula do fogo divino, elle eleva o homem acima da terra, desprende-o da argilla que o envolve, e dá-lhe força para dominar todos os obstaculos, para querer o impossivel.
Esperar tranquillamente um dia para ir dizer-lhe que eu a amava, e queria amal-a com todo o culto e admiração que me inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quasi uma infamia.
Seria dizer-lhe que tinha reflectido friamente, que tinha pesado todos os prós e contras do passo que ia dar, que havia calculado como um egoista a felicidade que ella me offerecia.
Não só minha alma se revoltava contra esta idéa; mas parecia-me que ella, com a sua delicadeza de sentimento, embora não se queixasse, sentiria vêr-se objecto de um calculo e o alvo de um projecto de futuro.
A minha viagem foi uma corrida louca, esvairada, delirante. Novo Mazzepa, passava por entre a cerração da manhã, que cobria os pincaros da serrania, como uma sombra que fugia rapida e veloz.
Dir-se-hia que alguma rocha collocada em um dos cabeços da montanha tinha-se desprendido de seu alveolo secular, e precipitando-se com todo o peso rolava surdamente pelas encostas.
O galopar de meu cavallo formava um unico som, que ia reboando pelas grutas e cavernas, e confundia-se com o rumor das torrentes.
As arvores, cercadas de nevoa, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão desapparecia sob os pés do animal; ás vezes parecia-me que a terra ia faltar-me, e cavallo e cavalleiro rolavam por algum d'esses abysmos immensos e profundos, que devem ter servido de tumulos titanicos.
Mas de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do mar, e fechava os olhos e atirava-me sobre o cavallo, gritando-lhe ao ouvido a palavra de Byron:--_Away!_
Elle parecia entender-me, e precipitava essa corrida desesperada; não galopava, voava; seus pés, como impellidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra.
Assim, minha prima, devorando o espaço e a distancia, foi elle, o nobre animal, abater-se á alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham abandonado com a vida, e no termo da viagem.
Em pé, ainda sobre o cadaver d'esse companheiro leal, vi á cousa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade.
Ahi fiquei perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e quando o casco desappareceu olhei os frocos de fumaça do vapor, que se ennovelavam no ar, e que o vento desfazia á pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desappareceu, e mais nada me fallava d'ella, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a occultava aos meus olhos.
O sol dardejava raios de fogo; mas eu bem me importava com o sol; como meu espirito os meus sentidos se concentravam em um unico pensamento: vêl-a, vêl-a em uma hora, em um momento, si possivel fosse.
Um velho pescador arrastava n'esse momento sua canôa á praia.
Approximei-me e disse-lhe:
--Meu amigo, preciso ir á cidade, perdi a barca, e desejava que você me conduzisse na sua canôa.
--Mas si eu agora mesmo é que chego!
--Não importa; pagarei o seu trabalho, e tambem o incommodo que isto lhe causa.
--Não posso, não, senhor; não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores cousas; e estou cahindo de somno.
--Escute, meu amigo...
--Não se canse, senhor, quando eu digo não, é não: e está dito.
E o velho continuou á arrastar a sua canôa.
--Bem, não fallemos mais n'isto; mas conversemos.
--Lá isto como o senhor quizer.
--A sua pesca rende-lhe bastante?
--Qual! rende nada!...
--Ora diga-me! Si houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia o que póde ganhar em um mez, não engeitaria de certo?
--Isto é cousa que se pergunte?
--Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar?
--Ainda que devesse remar tres dias com tres noites, sem dormir nem comer.
--N'esse caso, meu amigo, prepare-se, que vai ganhar o seu mez de pescaria; leve-me á cidade.
--Ah! isto já é outro fallar; porque não disse logo?...
--Era preciso explicar-me?!
--Bem diz o dictado que é fallando que a gente se entende.
--Assim, é negocio decidido. Vamos embarcar?
--Com licença; preciso de um instantinho para prevenir á mulher; mas é um passo lá e outro cá.
--Olhe, não se demore; tenho muita pressa.
--É n'um fechar dos olhos, disse elle correndo na direcção da villa.
Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho.
Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma nova difficuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
--O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por tornar calma.
--É que... o senhor disse que pagava um mez...
--De certo; e, si duvida..., disse levando a mão ao bolso.
--Não, senhor, Deos me defenda de desconfiar do senhor! Mas é que... sim, não vê, o mez agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estavamos com effeito no mez de Fevereiro.
--Não se importe com isto; está entendido que quando eu digo um mez é um mez de trinta e um dias; os outros são mezes aleijados, e não se contam.
--É isso mesmo, disse o velho rindo-se da minha idéa; assim como quem diz um homem sem um braço. Ah!... ah!...
E continuando á rir-se, tomou o caminho de casa e desappareceu.
Quanto á mim, estava tão contente com a idéa de chegar á cidade em algumas horas, que não pude deixar tambem de rir-me do caracter original do pescador.
Conto-lhe estas scenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circumstancias por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que comprehenda bem o drama simples que me propuz traçar-lhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memoria as menores particularidades d'essa historia, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento á essas reminiscencias, que não me animo á destacar d'ellas a mais insignificante circumstancia; parece-me que si o fizesse separaria uma parcella de minha vida.
Depois de duas horas de espera e de impaciencia, embarquei n'essa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impellida pelo braço ainda forte e agil do velho pescador.
Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavallo; não podia deixar assim exposto ás aves de rapina o corpo d'esse nobre animal, que eu tinha roubado á affeição do seu dono, para immolal-o á satisfação de um capricho meu.
Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de affeição, que espalha uma atmosphera de sentimento em torno de nós, e inunda até os objectos inanimados, quanto mais as creaturas, ainda irracionaes, que um momento se ligáram á nossa existencia para realisação de um desejo.



IX

Eram seis horas da tarde.
O sol declinava rapidamente, e a noite, descendo do céo, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanham o occaso.
Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutavamos contra o mar e o vento.
O velho pescador, morto de fadiga e de somno, estava exhausto de forças; a sua pá, que á principio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o fragil barquinho, apenas feria agora a flôr da agua.
Eu, recostado na pôpa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando á cada momento ver desenhar-se o perfil do meu bello Rio de Janeiro, começava seriamente á inquietar-me da minha extravagancia e loucura.
Á proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céo, esse vago inexprimivel da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face d'essa solidão immensa de agua e de céo, se apoderavam do meu espirito.
Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte, para fazer uma viagem breve e rapida, do que sujeitar-me á mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.
Com effeito, já tinha anoitecido; e, ainda que conseguissemos chegar á cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e fallar-lhe.
De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciencia? Tinha morto um animal, tinha incommodado um pobre velho, tinha atirado ás mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar soccorrendo algum infortunio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança d'ella.
Concebia uma triste idéa de mim; do meu modo de ver então as cousas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estupida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um acto de dedicação.
Tinha-me tornado philosopho, minha prima, e de certo comprehenderá a razão.
No meio da bahia, mettido em uma canôa, á mercê do vento e do mar, não podendo dar largas á minha impaciencia de chegar, não havia sinão um modo de sahir d'esta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito.
Si eu podesse fazer alguma nova loucura creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde: porém era impossivel.
Tive um momento a idéa de atirar-me á agua, e procurar vencer á nado a distancia que me separava d'ella; mas era noite, não tinha a luz de _Hero_ para guiar-me, e me perderia n'esse novo Hellesponto.
Foi de certo uma inspiração do céo ou o meo anjo da guarda que me veio advertir que n'aquella occasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.
Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.
Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tinha trazido; e fizemos uma verdadeira collação de contrabandistas ou piratas.
Cahi na asneira de obrigal-o á beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhal-o e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que d'este modo elle restabeleceria as forças e chegariamos mais depressa.
Tinha-me esquecido que a sabedoria das nações, ou a sciencia dos proverbios, consagra o principio de que de vagar se vai ao longe.
Acabada a nossa magra collação, o pescador começou á remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.
Assim, docemente embalado pela idéa de vêl-a e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrella da tarde, que ia sumir-se no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti á pouco e pouco fecharem-se-me as palpebras, e dormi.
Quando accordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.
Não sei onde estavamos; via ao longe algumas ilhas: o pescador dormia na prôa, e resonava como um boto.
A canôa tinha vogado á mercê da corrente: e o remo, que cahira naturalmente das mãos do velho, no momento em que elle cedêra á força invencivel do somno, tinha desapparecido.
Estavamos no meio da bahia, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.
Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na comica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dôr profunda, de uma angustia cruel como a que soffri então.
Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passáram perto, apezar dos nossos gritos, seguiram seu caminho, não podendo suppôr que com o tempo calmo e sereno que fazia houvesse sombra de perigo para uma canôa que boiava tão levemente sobre as ondas.
O velho, que tinha accordado, nem se desculpava; mas a sua aflicção era tão grande que quasi me commoveu; o pobre homem arrancava os cabellos e mordia os beiços de raiva.
As horas corrêram assim n'essa atonia do desespero. Sentados em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que succedia, não proferiamos uma palavra, não faziamos um gesto.
Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco lembrando-me que estavamos á 13, e que o paquete devia partir no dia seguinte.
Não era unicamente a idéa de uma ausencia que me afligia: era tambem a lembrança do mal que ia causar-lhe, á ella, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoista, supporia que a havia abandonado, e que ficára em Petropolis divertindo-me.
Aterrava-me com as consequencias que poderia ter esse facto sobre a sua saude tão fragil, sobre a sua vida; e me condemnava já como assassino.
Lancei um olhar hallucinado sobre o pescador, e tive impetos de abraçal-o e atirar-me com elle ao mar.
Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!
De que me serviam a intelligencia, a vontade, e essa força invencivel do amor, que me impellia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?
Algumas braças d'agua e uma pequena distancia me retinham e me encadeavam n'aquelle lugar como á um poste; a falta de um remo, isto é, de tres palmos de madeira, creava para mim o impossivel; um circulo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.
A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas azas brancas; o peixe, que fazia scintillar um momento seu dorso de escamas á luz das estrellas; o insecto, que vivia no seio das aguas e plantas marinhas, eram reis d'essa solidão, na qual o homem não podia siquer dar um passo.
Assim, blasphemando contra Deos e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me á Providencia; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrellas empallidecerem e o dia raiar.
Tudo estava sereno e tranquillo; as aguas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava uma aragem tenue; que dir-se-hia o halito das ondas adormecidas.
De repente pareceu-me sentir que a canôa deixára de boiar á discrição e singrava lentamente; julgando que fosse illusão minha, não me importei, até que um movimento continuo e regular convenceu-me.
Afastei a aba do capote e olhei, receiando ainda illudir-me; não vi o pescador, mas á alguns passos da prôa percebi os rolos de espuma que formava um corpo agitando-se nas ondas.
Approximei-me, e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canôa por meio de uma corda que amarrára á cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.
Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrificio que eu supunha inutil: não era possivel que um homem nadasse assim por muito tempo.
Com effeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canôa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma especie de borborinho no seu peito largo e forte.
Bebeu um trago de vinho, e com o mesmo cuidado deixou-se cahir n'agua e continuou á puxar a canôa.
Era alta noite quando n'esta marcha chegámos á uma especie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desappareceu.
Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir si era fogo, si luz, sinão quando uma porta abrindo-se deixou-me ver o interior de uma cabana.
O velho voltou com um outro homem, sentáram-se sobre uma pedra e começáram á fallar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma historia de ladrões.
A minha suspeita, porém, era injusta; os dous pescadores estavam á espera de dous remos que lhes trouxe uma mulher, e immediatamente embarcáram e começaram a remar com uma força espantosa.
A canôa resvalou sobre as ondas, agil e veloz como um d'esses peixes de que ha pouco invejava a rapidez.
Ergui-me para agradecer á Deos, ao céo, ás estrellas, ás aguas, á toda a natureza emfim, o raio de esperança que me enviavam.
Uma facha escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.
A cidade começou á erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzella que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente limpida de um rio.
Á cada movimento de impaciencia que eu fazia, os dous pescadores dobravam-se sobre os remos e a canôa voava. Assim nos approximámos da cidade, passámos entre os navios, e nos dirigimos á Gloria, onde pretendia desembarcar, para ficar mais proximo de sua casa.
Em um segundo tinha tomado á minha resolução; chegar, vêl-a, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me n'esse mesmo paquete em que ella ia partir.
Não sabia que horas eram; mas ha pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um credito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhal-a ao fim do mundo.
Já via tudo côr de rosa, sorria á minha ventura e gozava da alegre sorpresa que ia causar-lhe, á ella que já não me esperava.
A sorpresa, porém, foi minha.
Quando passava diante de Villegaignon descobri de repente o paquete inglez: as pás se moviam indolentemente, e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar suas forças, para precipitar-se á toda a carreira.
Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao hombro de sua mãi, e com os olhos engolfados no horizonte, que occultava o lugar onde tinhamos passado a primeira e ultima hora de felicidade.
Quando me vio, fez um movimento, como si quizesse lançar-se para mim; mas conteve-se, sorrio-se para sua mãi, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céo, como para agradecer á Deos, ou para dirigir-lhe uma prece.
Trocámos um longo olhar, um d'esses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem ainda palpitante das emoções que sentio n'outro coração; uma d'essas correntes electricas que ligam duas vidas em um só fio.
O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as aguas; e o monstro marinho, rugindo como uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos negros, lançou-se.
Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como as azas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céo.
O paquete sumio-se no horizonte.



X

O resto d'esta historia, minha prima, a senhora conhece, com excepção de algumas particularidades.
Vivi um mez, contando os dias, as horas e os minutos; o tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devoral-o.
Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversando com elle, e lhe contado a minha impaciencia e o meu soffrimento, começava á calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que faltavam para acabar a semana, e as semanas que ainda faltavam para acabar o mez.
No meio da tristeza que me causára a sua ausencia, o que me deo um grande consolo foi uma carta que ella me havia deixado, e que me foi entregue no dia seguinte ao da sua partida.

     «Bem vês, meu amigo, dizia-me ella, que Deos não quer aceitar o      teu sacrificio. Apezar de todo o teu amor, apezar de tua alma,      elle impedio a nossa união; poupou-te um soffrimento e á mim      talvez um remorso.
     Sei tudo quanto fizeste por minha causa, e adivinho o resto; parto      triste por não te ver, mas bem feliz por sentir-me amada, como      nenhuma mulher talvez o seja n'este mundo.»

Esta carta tinha sido escripta na vespera da sahida do paquete; um criado que viera de Petropolis, e á quem ella incumbira de entregar-me a caixinha com o seu retrato, contou-lhe metade das extravagancias que eu praticára para chegar á cidade no mesmo dia.
Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrella, depois de perguntar a hora da sahida do vapor; e que em baixo da serra referiram-lhe como eu tinha morto um cavallo para alcançar a barca, e como me embarcára em uma canôa.
Não me vendo chegar, ella adivinhára que uma difficuldade invencivel me retinha, e attribuia isto á vontade de Deos, que não consentia no meu amor.
Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma cousa me admirou; ella não me dizia um adeos, apezar de sua ausencia e apezar da molestia que poderia tornar essa ausencia eterna.
Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir estava convencida que a acompanharia.
Com effeito parti no paquete seguinte para a Europa.
Ha de ter ouvido fallar, minha prima, si é que ainda não sentio, da força dos presentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma nas suas grandes affeições.
Vou contar-lhe uma circumstancia que confirma este facto.
No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instincto, que revelação, me fez correr immediatamente ao correio; parecia-me impossivel que ella não tivesse deixado alguma lembrança para mim.
E de facto em todos os portos da escala do vapor havia uma carta que continha duas palavras apenas:
     «Sei que tu me segues. Até logo.»
Emfim cheguei á Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os meus soffrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimivel gozo com que me acolheu.
Sua mãi dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ella nunca duvidára de mim! Esperava-me como si a tivesse deixado na vespera, promettendo voltar.
Encontrei-a muito abatida da viagem; não soffria, mas estava pallida e branca como uma d'essas _Madonas_ de Raphael, que vi depois em Roma.
Ás vezes uma languidez invencivel a prostava; n'esses momentos um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como si a alma exhalando-se envolvesse o seu corpo.
Sentado a seu lado, ou de joelhos á seus pés, passava os dias á contemplar essa agonia lenta; sentia-me morrer gradualmente, á semelhança de um homem que vê os ultimos clarões da luz que vai extinguir-se e deixal-o nas trevas.
Uma tarde que ella estava ainda mais fraca tinhamo-nos chegado para a varanda.
A nossa casa em Napoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondia-se nas ondas; um raio pallido e descorado veio enfiar-se pela nossa janella e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira.
Ella abrio os olhos um momento e quiz sorrir; seus labios nem tinham força para desfolhar o sorriso.
As lagrimas saltáram-me dos olhos; havia muito que eu tinha perdido a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com aquelle reflexo do occaso, que me parecia o seu adeos á vida.
Sentindo minhas lagrimas molharem suas mãos, que eu beijava, ella voltou-se e fixou-me com os seus grandes olhos languidos.
Depois, fazendo um esforço reclinou-se para mim e apoiou as mãos sobre o meu hombro.
--Meu amigo, disse ella com voz debil, vou te pedir uma cousa, a ultima. Tu me promettes cumprir?
--Juro, respondi-lhe eu com a voz cortada pelos soluços.
--D'aqui á bem pouco tempo... d'aqui á algumas horas talvez... Sim! sinto faltar-me o ar!...
--Carlota!...
--Soffres, meu amigo! Ah! si não fosse isto eu morreria feliz.
--Não falles em morrer!
--Pobre amigo, em que deverei fallar então? Na vida?... Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro... um instante que breve terá passado?
--Tu te illudes, minha Carlota.
Ella sorrio tristemente.
--Escuta; quando sentires minha mão gelada, quando as palpitações do meu coração cessarem, promettes receber em teus labios a minha alma?
--Meu Deos!...
--Promettes? sim?...
--Sim.
Decorreram instantes. De repente ella tornou-se livida; sua voz suspirou apenas:
--Agora!...
Apertei-a ao peito e collei meus labios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia sanctificar.
Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem as pulsações de seu seio.
De repente ergueu a cabeça. Si visse, minha prima, que reflexo de felicidade e alegria illuminava n'esse momento seu rosto pallido!
--Oh! quero viver! exclamou ella.
E com os labios entreabertos aspirou com delicia a aura impregnada de perfumes que nos enviava o golpho de Ischia.
Desde esse dia foi pouco a pouco restabelecendo-se, ganhando as forças e a saude; sua belleza reanimava-se e expandia como um botão que por muito tempo privado de sol se abre em flôr viçosa.
Esse milagre, que ella sorrindo e corando attribuia ao meu amor, foi-nos um dia explicado bem prosaicamente por um medico allemão, que fez-nos uma longa dissertação á respeito da medicina.
Segundo elle dizia, a viagem tinha sido o unico remedio, e o que nós tomavamos por um estado mortal não era sinão a crise que se operava, crise perigosa, que podia matal-a, mas que felizmente a salvou.
Casámo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novella.
Percorrêmos a Allemanha, a França, a Italia e a Grecia; passámos um anno n'essa vida errante e nomade, vivendo do nosso amor e alimentando-nos de musica, de recordações historicas, de contemplações de arte.
Creámos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositámos n'elle todas as bellas reminiscencias de nossas viagens, toda a poesia d'essas ruinas seculares em que as gerações que morrêram fallam ao futuro pela voz do silencio: todo o enlevo d'essas vastas e immensas solidões do mar, em que a alma, dilatando-se no infinito, sente-se mais perto de Deos.
Trouxemos das nossas peregrinações um raio do sol do Oriente, um reflexo da lua de Napoles, uma nesga do céo da Grecia, algumas flôres, alguns perfumes, e com isto enchêmos o nosso pequeno universo.
Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no campanario da capellinha em que nascêram, apenas ella recobrou a saude e as suas bellas côres, viemos procurar em nossa terra um cantinho para esconder esse mundo que haviamos creado.
Achámos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva suspenso entre o céo e a terra por uma ponta de rochedo.
Ahi abrigámos o nosso amor e vivemos tão felizes que só pedimos á Deos que nos conserve o que nos deu: a nossa existencia é um longo dia, calmo e tranquillo, que começou _hontem_, mas que não tem _amanhã_.
Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, arvores, sombras,--eis toda a nossa riqueza.
Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ella arvora-se em dona de casa, ou vai cuidar de suas flôres; eu fecho-me com os meus livros e passo o dia á trabalhar. São os unicos momentos em que não nos vemos.
Assim, minha prima, como parece que n'este mundo não póde haver um amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos d'essa fraqueza.
Ella tem ciumes de meus livros, como eu tenho de suas flôres. Diz que a esqueço para trabalhar; eu queixo-me de que ella ama as suas violetas mais do que á mim.
Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu lado e dizer-me ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor:--_No ti scordar di me_.
Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta historia que lhe acabo de contar, e que é ao mesmo tempo o nosso drama e o nosso poema.
Eis, minha prima, a resposta á sua pergunta: eis porque esse moço elegante, como teve a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e retirou-se da sociedade, depois de ter passado um anno na Europa.
Podia dar-lhe outra reposta mais breve, e dizer-lhe simplesmente que tudo isto succedeu porque me atrasei _cinco minutos_.
D'esta pequena causa, d'esse grão de arêa, nasceu a minha felicidade; d'ella podia resultar a minha desgraça. Si tivesse sido pontual como um Inglez não teria tido uma paixão nem feito uma viagem; mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo á passear pela rua do Ouvidor e á ouvir fallar de politica e de theatro.
Isto prova que a pontualidade é uma excellente virtude para uma machina: mas um grave defeito para um homem.
Adeos, minha prima, Carlota impacienta-se, porque ha muitas horas que lhe escrevo: não quero que ella tenha ciumes d'esta carta e me prive de envial-a.
    Minas, 12 de Agosto.

Abaixo da assignatura havia um pequeno _post scriptum_ de uma lettra fina e delicada:

     «_P. S._--Tudo isto é verdade, D***, menos uma cousa.
     Elle não tem ciumes de minhas flôres, nem podia ter, porque sabe      que só quando seus olhos não me procuram é que vou visital-as e      pedir-lhes que me ensinem á fazer-me bella para agradal-o.
     N'isto enganou-a; mas eu vingo-me roubando-lhe um dos meus beijos,      que lhe envio n'esta carta.
     Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar nossa felicidade ao      mundo invejoso.
                                            Carlota.»



Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:

  +----------+-----------------------+---------------------------+   |          |       Original        |         Correcção         |   +----------+-----------------------+---------------------------+   |#pág.  28 | figindo               | fingindo                  |   |#pág.  82 | nosa mãi              | nossa mãi                 |   |#pág. 121 | vaparoso              | vaporoso                  |   |#pág. 121 | Sentado o seu lado    | Sentado a seu lado        |   |#pág. 124 | foças                 | forças                    |   |#pág. 130 | asssignatura          | assignatura               |   +----------+-----------------------+---------------------------+




End of Project Gutenberg's Cinco minutos, by José Martiniano de Alencar
*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CINCO MINUTOS ***
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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life.
Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org

Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541.  Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations.  Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887.  Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact
For additional contact information:      Dr. Gregory B. Newby      Chief Executive and Director      gbnewby@pglaf.org
Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment.  Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS.
The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements.  We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance.  To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate
While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate.
International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.
Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit:  www.gutenberg.org/donate

Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic works.
Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone.  For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
     www.gutenberg.org
This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.

FIM

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