🔉️(735)_O PODER DAS PERGUNTAS [Palestra] (por Marilda Silveira)

 


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SABER FAZER PERGUNTAS É MAIS IMPORTANTE QUE SABER AS RESPOSTAS

Marilda Silveira


Eu nasci em Bambuí, uma cidade de 23 mil habitantes, onde eu morei até os 15 anos. Lá eu construí meus laços mais fortes e muitas das minhas crenças. Eu acreditava, por exemplo, que para fazer sucesso, eu precisava ter um nome bom, a gente acredita em cada coisa, e eu não levava muita fé em Marilda Silveira não, desculpa pai.

Eu namorei com um rapaz que tinha o sobrenome Carrasa, eu imaginava, Marilda Carrasa, agora sim tem alguma chance de sucesso. Acabou que o namoro não deu certo, eu mirei no Carrasa, acertei no Silva, mas eu me pacifiquei com o meu nome, que eu nunca mudei. Mas talvez tenha sido ali que eu tenha tomado contato com o fato de que aquela não seria a única crença com a qual eu teria que dialogar.

Também foi em Bambuí, que eu escutei muitas vezes. Corre para dentro, está chegando um caminhão leiteiro com o pessoal da colônia. Toma cuidado onde você senta, onde você encosta, é muito perigoso, pode ser que você pegue essa doença.

Em 1949, a Lei 610 regulamentou a política pública de combate à ranceníase, e ela autorizava que as pessoas que fossem diagnosticadas com aquela doença fossem levadas para um lugar compulsoriamente isoladas, que era chamado de colônia ou de leprosários. Essa lei também autorizava que os filhos dos rancenianos fossem levados para orfanatos. A gente não tem muitas informações sobre esses filhos dos rancenianos, mas Bambuí era uma das 40 cidades onde tinha uma colônia, um lugar que até hoje a gente chama de colônia.

A informação mais confiável sobre os filhos dos rancenianos é da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, é do órgão a informação de que 40 mil bebês nasceram nas colônias de rancenianos. Muitos desses filhos nunca viram os pais. Os que viram, algumas vezes, não encontraram nunca mais.

Minha mãe sempre contou o caso do José. O José primeiro viu a mãe embora, depois o irmão. Ele dizia que rezava todos os dias para ficar doente, porque ele sabia que era só com a doença que ele ia reencontrar a mãe.

Ele diz que o dia mais feliz da vida dele foi o dia que ele descobriu que ele estava doente, porque foi o dia do reencontro. Durante praticamente toda a minha vida, a rancenia se teve cura, o isolamento não era mais obrigatório. Mas, ainda assim, eu tinha muito medo.

Eu tinha medo de ficar doente, eu tinha medo de ser separada da minha mãe. Eu tinha medo de tudo, até da minha orelha e do meu nariz caírem. Acredite, a gente ouvia isso, e não era pouco.

O problema é que eu não tinha medo só da doença, eu tinha medo das pessoas. Eu aprendi a ter medo das pessoas. Eu tinha medo porque eu acreditava que a ranceníase não tinha cura.

Apesar de ter cura há mais de 30 anos, eu pensava que aquelas pessoas estavam ali como pessoas más, prontas para poder me transmitir a doença, esperando só a primeira oportunidade. Se eu quisesse, naquela época, reforçar aquilo que eu pensava da vida, que eu acreditava sobre ranceníase, o máximo que eu tinha era o que me falavam, a biblioteca da minha escola ou a enciclopédia Barça que a gente tinha lá na minha casa. Era muito difícil ter acesso ao conhecimento.

E isso não foi muito diferente de ter a faculdade de Direito. Eu me lembro de ir na biblioteca da faculdade para olhar no último volume da revista de jurisprudência, para tentar encontrar jurisprudência. E eu pensava, meu Deus do céu, o dia que for fácil achar isso aqui, não vai precisar de juiz, de promotor, de estagiário, de advogado, para mais nada.

Mal sabia eu que o mundo ia mudar tão rapidamente que a gente ia ter as respostas ali com um clique. É muito difícil não me perguntar se, nesse mundo, com tanto conhecimento, a minha forma de lidar com a ranceníase teria sido diferente. A questão é que a gente é muito bom para achar resposta, mas a gente não é tão bom assim para fazer pergunta.

E quando a gente faz as perguntas, será que a gente está, assim, preparado para encontrar uma resposta diferente daquela que a gente quer? Eu sou advogada e professora de Direito. Eu pesquiso e oriento alunos no mestrado e no doutorado sobre democracia, novas tecnologias e participação feminina na política. Os meus alunos, de modo geral, sabem o que eles querem pesquisar.

O problema é que eles chegam com a pergunta e já chegam com a resposta. Eu sempre pergunto, mas se você já tem a resposta, para que você vai pesquisar isso? Na verdade, é uma pesquisa para poder engordar a justificativa? Isso não faz o menor sentido. Talvez você tenha uma hipótese.

Pesquise, avalie as alternativas. Aí você verifica se a sua hipótese coincide com a resposta. Muitas vezes, as respostas a que a gente chega em uma pesquisa não são as mesmas da nossa hipótese.

O Jonathan Hyde, quando apresenta para a gente a sua teoria sobre os alicerces morais, ele vai descrever a mente humana como uma máquina de contar histórias, não como uma máquina de lógica. Ele vai dizer, a gente podia ter nascido com o cientista na cabeça, aquele que olha as alternativas e tenta encontrar respostas sem viés. Ou com o juiz na cabeça, aquele que analisa os fundamentos, encontra o melhor fundamento e apresenta com uma justificativa.

Mas a verdade é que a gente nasceu com um advogado na cabeça, aquele que está prontinho para levar a mão na prateleira da justificativa, o que tem a resposta e que quer encontrar o fundamento. Como lidar com isso? Cada área encontra sua estratégia. A ciência desenvolveu o método científico, o direito a algumas ferramentas e as principais, o contraditório, a ampla defesa e o dever de fundamentação.

Mas, às vezes, a gente falha miseravelmente. Foi o que aconteceu com os hansenianos. A gente falhou na capacidade de dialogar.

Aí vem a lei e é um pouco mais impositiva. Em 1995, a Lei nº 9.010 proibiu usar a palavra lepra e as suas variações nos documentos públicos. A lei chegou e resolveu.

É proibido usar a palavra lepra nos documentos públicos. A gente faz isso em inúmeras áreas da vida. Não foi muito diferente com as mulheres e com os negros.

Não foi só a cultura que colocou as mulheres e os negros em uma posição de desigualdade. Foi o Estado brasileiro. Até 1962, as mulheres eram consideradas relativamente incapazes.

Para praticar os dados da vida civil, elas precisavam de autorização do marido. Só com o Estatuto da Mulher Casada foi que a mulher perdeu a sua condição de relativamente incapaz. É claro que isso repercutiu na nossa vida.

Repercute até hoje. Não é novidade para ninguém que a mulher tem uma posição de desigualdade na política. A gente não precisa ir muito longe.

É só olhar no segundo turno. Quatro candidatos a presidente e vice. Quatro homens.

24 candidatos no segundo turno. Duas mulheres. Se a gente mudar essa equação e analisar a questão da raça-cor, o resultado não vai ser muito diferente.

A gente teve 50 candidatos, considerando as eleições suplementares. 36 brancos. 11 pardos.

Dois índios. Um preto. A gente segrega o que é diferente.

E o advogado que está aqui na nossa cabeça não está pronto para se tornar um cientista ou um juiz. Ele está pronto para ir lá na prateleira da justificativa. Ele está pronto para usar esse shopping de justificativa que é o mundo novo.

Isso piora quando a gente sabe das coisas. Ou acha que sabe das coisas. Ou quando a gente estudou muito sobre uma coisa.

Ou quando a gente viveu muito uma determinada coisa. Quem não conhece alguém que fala eu tenho experiência. Eu tenho bom senso.

Se bom senso resolver esse problema, o problema está resolvido. Todo mundo que estudou muito uma coisa se acha o suficiente. Não quer mais dialogar.

Mas acontece que, às vezes, a vida apresenta para a gente uma enciclopédia do mundo novo. Normalmente, a gente não sabe mesmo de tudo. Eu, por exemplo, achava que não ia encontrar nenhuma novidade no banho.

Afinal de contas, eu tomei banho a vida inteira, todo dia. Ou quase todo dia, como diz minha mãe. Acontece que a vida me entregou um contraponto.

Eu fiquei muito doente. E eu não conseguia tomar banho sozinha. Essa tarefa era da minha mãe.

Ela que me dava banho. Todo dia era aquela peleja. Mãe esfrega forte.

Mãe esfrega fraco. Você não pode imaginar o que é a coceira de todos os pelos do seu corpo nascendo ao mesmo tempo. Eu nunca vou esquecer a primeira vez que eu tomei banho sozinha de novo.

Da água caindo na minha cabeça. Do poder libertador de levantar o braço e esfregar a minha própria cabeça. Ou de pegar a bucha e esfregar até arrancar o couro para poder acabar com aquela coceira infernal.

Naquele dia eu tive a oportunidade de pisar num lugar que eu nunca tinha estado. Mas mais de um lugar que não era o meu. Eu tive a oportunidade de experimentar o sentimento do coração aberto.

Naquele dia eu escrevi no espelho. Você pode tomar banho sozinha. Seja grata.

Para nunca mais esquecer que às vezes eu posso tomar banho sozinha. Às vezes eu não posso. Às vezes eu estou no grupo dos que pode.

Às vezes eu estou no grupo dos que não pode. Mas, sobretudo, para não perder a capacidade de compreender as razões do grupo em que eu não estou. Tomar contato com o outro lado, com a divergência, não é só uma oportunidade.

É um direito. É o direito de aprender a divergir. De saber aquilo que a gente não sabe.

Não tomar contato com a divergência não faz ela acabar. Ela não vai acabar nunca. Só faz com que eu não saiba.

É muito importante que a gente saiba dialogar com a divergência. Isso é uma prerrogativa que a gente usa no direito. Mas que a gente deve trazer para a vida.

A primeira ação que eu ajuizei na vida foi para os meus pais uma ação de desapropriação indireta. Uma experiência danada. Coitados dos meus pais, sou cobaia.

Quando eu levei a inicial para a minha mãe, ela leu, ganhamos. Certeza que ganhamos. Leu a contestação, perdemos.

Perdemos, perdemos. Na hora que ela leu a réplica, reacendeu alguma esperança. No final das contas, a gente ganhou.

Mas todo esse percurso me ensinou que é o contraditório que salva. Que é mais importante saber fazer as perguntas do que dar as respostas. E que toda vitória é provisória.

Talvez isso não resolva o problema da guerra. Não salve o Estado Democrático de Direito. Mas pode trazer alguma paz para a nossa vida no grupo de WhatsApp da família.

E, quem sabe, nos afaste de algumas crenças, como que a Terra é plana, que o lugar da mulher não é na política e que a gente só vai fazer sucesso se o nosso nome for Carrasa. Muito obrigada.



Fim

Fonte: Vídeo "Saber fazer perguntas é mais importante que saber as respostas | Marilda Silveira | TEDxESMPU" in https://youtu.be/81F1Pfx9LTk?list=LL

(Transcrito por TurboScribe.ai)