(586)_A LIÇÃO PORTUGUÊSA [Comportamento] (por Pe. Ercilio Sayon)


 




A LIÇÃO PORTUGUÊSA

(Relato de um fato real | Desejo dividir com os colegas [que tiverem a paciência de ler] esta rica experiência que fiz nestas férias pascais.)


Fonte: Texto datilografado do Pe. ERCILIO SAYON



O ônibus ia de Fátima (Portugal) a Salamanca (Espanha) quando aconteceram os imprevistos. Eram peregrinos italianos, em sua maioria idosos, que retornavam de uma peregrinação a Fátima. Pretendiam ainda passar por Salamanca, Avila, e em Madrid tomariam o avião de volta a Roma. Era o dia 8/4/1985, segunda feira de páscoa.

Uma avaria mecânica na suspensão obrigou o ônibus a andar muito lentamente, pelo asfalto em mau estado, até Coimbra.

Diga-se a verdade: os italianos têm complexo de superioridade em relação aos portuguêses. Estes são, na visão de muitos italianos, pobres, com pouca instrução, quase não são europeus... Pedir socorro a mecânicos portuguêses era uma necessidade que não se podia evitar. Fomos acolhidos numa oficina do município. Como era municipal, existiu uma certa burocracia e foram necessários telefonemas, permissões de um chefe, de outro, etc... o que começou a irritar alguns passageiros.

Para consertar a suspensão, todos tiveram que descer do ônibus. Por azar, começou a chover. Foi então que os portuguèses começaram a nos dar a lição. Encostaram um onibus vazio ao lado do nosso, onde pudemos nos abrigar da chuva, enquanto consertavam o nosso.

Eram ali pelas 10 horas da manhã. Seis mecânicos, orientados por um chefe, começaram o difícil trabalho. As horas passavam demoradas no onibus-abrigo... 11 horas, 12 horas, 13 horas... A oficina deveria fechar para o almoço dos mecânicos. Mas não. Enquanto não terminaram não foram almoçar. Finalmente pronto. Na hora de pagar o serviço, uma surpresa: não aceitavam pagamento. Foi com alegria que quiseram nos prestar esta ajuda, e não pensando em dinheiro. A muito custo aceitaram uma gorjeta.

O fato era inexplicável para os italianos. Na Itália tudo se paga. Até favor... Este gesto dos mecanicos portugueses çomeçou a desvelar aos italianos não só a verdadeira face dos portugueses, mas todo um mundo em que os valores são outros, e não o dinheiro, o pagamento, o salário. Um mundo em que auxiliar o próximo tem mais importância que um pouco a mais ou a menos de dinheiro no bolso.

A viagem prosseguiu cheia de comentários elogiosos ao gesto português.

Mas a lição não terminara. O episódio da oficina fora apenas a introdução. Eram passadas já as 15 horas quando chegamos ao ponto pré-determinado para o almoço: "Restaurante A saborosa", cerca de 70 quilômetros adiante de Coimbra, perto de Tábua, ao longo da rodovia que se estende rumo à fronteira espanhola, cheia de curvas e em mau estado de conservação.

Ao descer do ônibus, o chefe da excursão gela. Perde a a palavra. Começa a olhar embaixo do assento. Entra e sai, branco. Desaparecera a pasta que continha todo o dinheiro da excursão e as passagens aéreas já confirmadas de todo o grupo, Madrid-Roma. E era muito dinheiro, pois sendo a primeira viagem da organização neste roteiro, o pagamento das refeições e hospedagens era feito em dinheiro e nao em cheque italiano. Milhões de liras, em escudos, em pesetas, em liras... Todos gelam. A excursão parecia ter chegado bruscamente ao fim. Que fazer? Quem tirara a pasta? Como é possivel? Foi na oficina, certamente. E na mente de muitos certamente lampejou a suspeita. A generosidade em não cobrar nada estava explicada. Safados portugueses!

A primeira idéia, sem pensar em almoçar, foi correr a um telefone, avisar a polícia, telefonar para o chefe da oficina mecânica de Coimbra.

Foi então que a lição dos portugueses teve continuidade. Ao chegar ao telefone do restaurante "A saborosa" havia já um recado: um operário, ao ser mandado recolocar no devido lugar o ônibus que nos abrigara da chuva enquanto arrumavam o nosso, encontrara lá dentro uma pasta e um guarda-chuva. Certificando-se do valioso conteúdo da bolsa (muitos meses de seu salário...), levou imediatamente ao chefe, e ambos contaram e anotaram exatamente o dinheiro encontrado.  Depois, telefonaram à polícia, dizendo que um grupo de italianos      havia pedido socorro mecânico lá e deixado uma pasta com muito dinheiro. Não sabiam dizer os nomes, nem onde iríamos almoçar. Somente sabiam a cor do ônibus e a direção em que viajávamos: iríamos a Salamanca. Imediatamente a polícia se nos a telefonar a todos os restaurantes à beira da rodovia, até descobrir o "A saborosa" onde havíamos pré-reservado o almoço. Mas ainda não havíamos chegado. E deixou o aviso: o dinheiro, contado, estava à disposição na oficina.

Tamanha honestidade e a diligência em nos procurar, comoveu a todos. A lição estava sendo dada magistralmente. Junto com elogios aos portuguêses, os italianos começaram a se desprezar a si próprios: "isso nunca aconteceria na Itália" /.../ "imagine isso em Roma" /.../ "pena que os portuguêses vão entrar agora na Comunidade Européia, pois vão aprender os nossos vícios" /.../ "isso mereceria um telefonema de parabéns ao presidente português"/.../ e outros comentários semelhantes.

Mas, incrivelmente, a lição não acabara ainda. Como estávamos a cerca de setenta quilômetros de Coimbra, o mais certo não era retornar com o ônibus para buscar o dinheiro, mas com um táxi. Seria mais rápido, e evitaria mais duas horas de atraso, além das três que já tivéramos na oficina. Mas não havia táxi naquele descampado. Nem carro particular. Pedimos, então, por telefone, ao chefe da oficina que mandasse a pasta com um taxi de Coimbra, fazendo-nos assim mais um favor, além de ganharmos tempo e podermos almoçar. Foi quando o chefe nos deu a última dose da lição. "Não se preocupem, disse ele, mando dois funcionários levarem agora mesmo com um carro da firma".

Uma hora depois, já almoçados, chega o carro, trazendo a esperada pasta. Descem do carro dois jovens mecânicos, sendo um o que achara a pasta. São recebidos com vivas, palmas, beijos, lágrimas furtivas de emoção pela lição de honestidade e amor ao próximo desconhecido que esta simples gente nos dava. Trazem o bilhete em que anotaram a quantia e pedem para conferir o dinheiro. E mais uma vez não querem pagamento, só um pouco pela gasolina... Aceitam uma gorda gorjeta que o chefe da excursão lhes faz aceitar.

A viagem prosseguiu, mas uma coisa ficou na sargeta diante do Restaurante "A saborosa": o orgulho de ser um povo mais rico, mais instruido, mais "europeu"... A lição fora aprendida e essa viajou junto nos corações e pensamentos de cada um: existem outros valores, valores mais importantes, que subsistem em culturas que nao sao a. nossa.. Cristianismo não é bela teoria. Não se é cristão por morar na cidade em que o Papa mora. Cristianismo não é fazer peregrinação a Fátima ou a Lourdes. Cristianismo nos ensinou o portugues.

O dono do guarda-chuva achado junto à pasta era o padre diretor espiritual da peregrinação. Foi ele que lembrou a parábola do bom samaritano, num sermãozinho ao entardecer, já na fronteira espanhola. Mas desta vez o bom samaritano foi um português. Nao sabemos o nome dele. Ele não sabe o nosso. Mas nos socorreu, interessou-se por nós, fez mais do que podia. Amou-nos. Verdadeira lição prática do evangelho.



Fim