(547)_O APARECIMENTO DA IMAGEM DE NOSSA SENHORA NO RIO PARAÍBA (Homilia de Dom Lucas)



O DOCE MILAGRE DE APARECIDA NA VISÃO APOSTÓLICA DE DOM LUCAS MOREIRA NEVES, ARCEBISPO PRIMAZ DO BRASIL (1988)


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Fonte: Homilia, - gravada por Carlos Eduardo da Silva, e divulgada pela Rádio Excelsior da Bahia -  proferida por Sua Ex.cia Revdma Dom Lucas Moreira Neves, em 12/10/85, no Colégio Pio Brasileiro – (Roma).



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Se não fica mal, logo de início, uma confidência. Confesso que todos os anos, chegando esta data de 12 de Outubro, torno a ler, por puro gosto, a crônica daqueles acontecimentos de Outubro de 1717 nas paragens de Itaguaçu.
Na legenda saborosa, cada detalhe tem o seu sabor. A expectativa trepidante da passagem do Governador D. Pedro de Almeida: a angustiosa e malograda procura de peixes para a mesa da autoridade;
o encontro no fundo da rede, primeiro do corpo, depois da cabeça, de uma tosca Imagem de barro, ainda mais enegrecida pela lama do fundo do rio Paraíba;
a pesca milagrosa de peixes, muito e bom, em seguida ao aparecimento da Imagem de Nossa Senhora;
o transporte desta à casa pobre de um dos pescadores, para veneração crescente do pessoal do lugar;
velas que se acendem sozinhas quando apagadas pelo vento, símbolo da fé daquele povo.

São os mesmos pescadores, o João Alves, o Domingos Garcia e o Felipe Pedroso que com uma devoção feita de amor e confiança, mas ao mesmo tempo de reverência, dão à Imagem o doce nome de Aparecida: o mais óbvio, o mais espontâneo para designar quem lhes aparecera, inesperada, entre as malhas da velha rede remendada. Eles não sabiam, os pescadores, mas esse era o nome mais adequado à pessoa que aquela Imagem representa.
Passados mais de 250 anos, atrevo-me a pensar que Aparecida é um dos títulos que melhor definem a Virgem Maria, pois todo seu Ser se reflete naquele seu modo de aparecer. Na discreção infinita, na emanação de quietude, de alegria mansa e de paz, que deixa atrás de si todo o seu aparecer.
Aparecida, pois, das águas profundas da raça humana; com suas vagas de decepção e de esperança; de aflição e de felicidade; do rio sinuoso, frequentemente revolto e lamacento, da história humana, a Mão de Deus vai retirá-la, porque quis precisar dela e Ela aparece na cena do mundo, no fluxo da história: não semi-deusa nem visão angélica, mas criatura humana, filha de Adão e Eva, trazendo no corpo a espessura e a cor da argila de que foi plasmada.
E, no entanto, como dizia Dante: "úmile ed alta piú che creatura, nigra, et formosa".
A mais bela e perfeita criatura saída das Mãos de Deus, a obra prima da criação.
Aparecida, porque: das misteriosas e insondáveis profundezas do seu desígnio de amor e salvação a Mão de Deus a vai recolher; e Ela aparece aos olhos maravilhados dos anjos e dos homens, — "termini fice sob eterno concilium" predestinada, a obra prima da Graça Divina.
Esta é a mesma que um dia apareceu, surgindo, sem fazer barulho, do fundo do rio Paraíba; a mesma que, silenciosa, muitas vezes aparece na nossa vida. Nesse ponto, queridos irmãos, lembro-me de ter apresentado ao público, há três anos, um sugestivo opúsculo de S. Maximiliano Maria Kolber, que o intitulou: "Quem és Tu, oh Imaculada?” E não consigo evitar um pensamento: E se o Domingos, o João Alves e o Felipe tivessem interrogado: "Quem és Tu, oh Aparecida?"
O que é que lhes teria respondido a Senhora representada pela estátua de barro pescada no rio Paraíba? Penso que Ela teria silenciado, avessa, como a mostra o Evangelho, a falar de si mesma.
Mas teria pedido à Igreja que respondesse em seu lugar. E a Igreja então teria proclamado, mais uma vez, aquilo que a partir da leitura contemplativa da Palavra de Deus, a partir do ensinamento dos Concílios, a partir do tesouro da tradição, esta Igreja crê a respeito do mistério de Maria.
A Igreja teria respondido que Aparecida é antes e acima de tudo, aquela que tendo concebido pela ação do Espírito Santo e dado a luz o Filho do Altíssimo, o Filho de Deus, é, na verdade, e pode ser chamada, como a chamou o Concílio de Éfeso: "Teotocos": A Mãe de Deus.
Essa maternidade divina é a raiz mais profunda e o mais alto vértice, o núcleo mais íntimo e a manifestação mais luminosa da vocação, da vivência e do mistério de Maria de Nazaré. É o que a torna absolutamente única entre todas as mulheres: A Inatingível. O milagre mais sublime do gênero humano e de toda a criação.
Deste atributo singular derivam, e para ele convergem, todos os outros atributos de Maria. Por isso, a Igreja responderia, sem dúvida, aos pescadores do Paraíba: "Aparecida é também a Imaculada Conceição", porque seria a Mãe de Deus. Este antecipando os méritos de Seu Filho a preservou de toda a mancha do pecado.
O mal não a tocou nem por um instante, nem de longe. A mácula original, fatídica herança da nossa raça, não a roçou sequer com a ponta de sua asa envenenada. Desde a sua concepção, Ela foi indene à própria sombra do mal.
Jorge Bernanos a definiu: "A menina mais jovem do que o pecado". E os espanhóis, os espânicos, a chamam com um termo gracioso e verdadeiro: "La Puríssima”. Toda pura, transparente e radiosa. Esta é a Imaculada Conceição.
Aparecida, responderia ainda a Igreja, é a cheia de Graça. Com esse título, usado em lugar do próprio nome, o anjo a saúda na cena da Anunciação: "Ave, ó cheia de Graça!". Com esta denominação, inspirando-se diretamente no Evangelho, a Igreja quer dizer que em Maria tudo é graça. Tudo dom total e gratuito de Deus; tudo irrupção e intervenção de Deus na sua vida.
A Igreja quer dizer, que a graça mais excelsa que Deus podia lhe conceder, indizível graça, é a de colocar nEla, como fruto de suas entranhas, o dom maior de Deus, que é o Seu Unigênito
A Igreja quer dizer, que ela própria, a humilde Aparecida, aparece como uma graça de Deus para a humanidade; visita de Deus, passagem de Deus pelo mundo e pela história. Aparecida, acrescentaria ainda a Igreja, relendo sob esta luz do Verbo as antigas profecias: É a sempre Virgem. E recolhendo a convicção dos padres e doutores ao longo dos séculos, explicaria que convinha àquela que gerou o Verbo permanecer intacta.
Quem sabe a Igreja não teria recitado para o João Alves, o Felipe e o Domingos, a quadrinha que talvez eles mesmos conhecessem, porque é fruto da piedade, de gente pobre e devota como eles: 

"No seio da Virgem Mãe / 

Entrou a Divina Graça / 

Como entrou, assim saiu / 

Como sol pela vidraça!" 

As palavras mais lindas que há para exprimir a transparência da virgindade de Maria.
Aparecida, continuaria a explicar a Igreja, é aquela que é fiel todos os dias e fiel até, “justa crucem”, ao fiat da sua adolescência, aparece associada em um nível de profundidade comparável à obra da Redenção realizada por Seu Filho.
Ninguém tanto quanto Ela, ninguém igual a Ela completa na própria carne o que faltou à Paixão de Cristo pelo Seu corpo que é a Igreja, a tal ponto que dEla se tenha dito que é a Co-redentora.
Diante da sua Imagem sob a cruz, ou com o Filho inânime no regaço materno, chamaram-na, e nós a chamamos ainda, com uma explosão carinhosa: A Senhora da Piedade. Em um texto teatral brasileiro, delicioso e significativo, Ariano Suassuna a intitulou: "A Compadecida".
Título verídico nos dois sentidos. Compadecida, porque capaz de padecer com o Filho até o amargo fim. Compadecida, porque cheia de compaixão por aqueles por quem o Filho padeceu.
Por isso mesmo, a Igreja poderia comentar ainda para os três pescadores: Aparecida é a Mãe de todos nós "Justa crucem", em um momento em que as palavras ganharam todo seu trágico significado, o Crucificado mostrou-a ao discípulo mais amado, João, e lhe disse: "Este é o teu Filho!" João compreendeu, Maria compreendeu que naquele instante sua maternidade com relação a Jesus não se extinguia pela morte dEle, mas se estendia em u'a maternidade espiritual relativa a todos os discípulos do Filho.
De certo modo, todos nos identificamos em João Evangelista. Somos todos João: João Paulo, João Alves, João Ninguém; todos filhos daquela que espiritualmente nos gerou na sua inesgotável compaixão.
E por fim, a Igreja com certeza diria: Aparecida é aquela que imediatamente após a sua dormição, atravessada a porta da morte foi elevada ao Céu, em corpo e alma. Nossa Senhora da Boa Morte, diz o nosso povo. Nossa Senhora da Assunção, Nossa Senhora da Glória. Sob as várias invocações, queremos dizer as mesmas coisas.
Que Deus não quis entregar à corrupção de uma cova no chão o corpo virginal que concebeu e gerou o Seu Verbo feito carne. Que, com Maria, é um pouco de todos nós; da nossa raça; do nosso corpo; da nossa condição humana, que foi arrebatada para junto de Deus.
E, portanto, nem tudo está perdido daquilo que é humano. Que podemos viver na saudade e na esperança daquele estar com Deus, que a fé nos diz ser o ponto culminante da aventura de nascer, viver e morrer. Aparecida, é pois, aquela Mulher coroada de 12 estrelas. Vitoriosa sobre o dragão e salvadora dos filhos.
Tudo isso, queridos irmãos e irmãs, a Igreja teria respondido se os três pescadores tivessem perguntado. Mas, no fundo, pensando bem, a parte o aparato científico, com que se dizem essas coisas, o João Alves, o Domingos Garcia e o Felipe Pedroso sabiam, ou melhor, acreditavam em tudo isso, ensinados pela Igreja.
Tudo isso eles diziam a respeito de Maria, em seus benditos, embora fossem nativos; nas suas ladainhas, embora estropiadas; nos seus terços cantados, nas suas novenas. Esses traços do rosto de Aparecida, eles os reconheciam e os proclamavam um por um: Mãe de Deus! Cheia de Graça! Sempre Virgem! Eles e os de sua linhagem espiritual, geração após geração, até os milhões de romeiros que cada ano peregrinam a Aparecida.
Eles acreditavam nestas coisas, os três pescadores. Com muita força. E se eles ainda fossem vivos e alguém com audácia típica da meia ciência, ignorando dois mil anos de doutrina e tradição da Igreja, remexendo categorias de um marxismo requentado, viesse lhes dizer, que Nossa Senhora não é nada daquilo que a Igreja lhes ensinou, mas uma invenção do opressor para dominar mais o oprimido e da hierarquia para defraudar o povo, certamente que o Domingos, o Felipe e o João Alves, reagiriam com a raiva e o sofrimento contidos na fala pachorrenta do pescador, e diriam: "Vade retro": Não ofenda; Não humilhe o povo; Não use o nome do pobre para espoliar o pobre de sua riqueza maior que é a sua fé e a sua devoção a Nossa Senhora.
Eu queria, irmãos e irmãs, que a mim e a vocês, Aparecida nos dissesse aqui agora, nesta liturgia que celebramos em seu louvor quem Ela é. Que Ela nos dissesse isto pela Palavra de Deus proclamada pela voz da Igreja escutada. Mas que Ela nos dissesse isto também com as palavras e a voz do coração, falando ao nosso coração. Quisera, irmãos e irmãs, que Ela aparecesse a cada um de nós, lá dentro, sem estrépito. Que aparecesse na sua condição de Mãe.
E aqui, tendo começado com uma confidência; quero terminar com outra confidência, baseada em uma reminiscência pessoal. Eu era bem menino no dia em que minha mãe me mostrou uma casa igual a tantas outras em uma rua da nossa São João Del-Rei, e me disse: É esta a casa.
Contou-me então, pela enésima vez, o "causo" que acontecera. Ali morava Dona Maria, me disse mamãe, fazia bastantes anos, um filho dela degenerado por más companhias, pelas bebidas, depois de muita estrepolia, depois de ofender gravemente à mãe, sumiu no mundo e não tinha quem desse notícia. Dona Maria, daquele dia em diante, fazia bastantes anos, nunca mais, nem de dia nem de noite, fechou a porta da casa. Vinha gente, vinham os soldados, vinha até o Sr. Vigário, e diziam: Dona Maria, olhe os ladrões; olhe os maus elementos. É um perigo esta porta aberta.
Mas Dona Maria respondia sempre: Eu não fecho, não. Tenho aquele filho que foi embora. Tenho fé em Deus que ele vai voltar. E quando voltar, pode ser que seja de noite alta e eu não quero que ele precise bater na porta, é só chegar e entrar.
Será talvez, porque o nome da humilde mulher de S. João Del-Rei era Maria? O fato é que quando maiorzinho comecei a conhecer a Virgem Maria, identifiquei-a logo, sem querer, como aquela que nunca fecha a porta, para que o filho de volta, noite alta, não precise bater à porta.
Hoje, é bem possível (eu falo por mim), que eu não seja aquele cristão, aquele frade, aquele padre, aquele bispo, que Nossa Senhora gostaria que eu fosse. É bem possível, que, por assim dizer, eu me encontre um pouqinho longe de casa. Pois bem, nesta missa, estou pedindo a Aparecida, Compadecida (falo por mim; cada um fale por si), que deixe a porta aberta porque um dia eu volto. E que tenha a santa paciência de esperar, se demorar ainda um bocado.
Amém



Nota: A transcrição do áudio foi feito pelo Movimento:
PEÇA À MÃE QUE O FILHO ATENDE.
Movimento Leigo a Serviço da Excelsa Rainha e Padroeira do Brasil - Salvador-Ba

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