🔉️(800)_A MARCELINA [Literatura] (de Artur Azevedo)


 


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A MARCELINA, 

de Artur Azevedo.


Naquele tempo, não há necessidade de precisar a época, era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiateria Ronyé e uma das figuras obrigadas de Rua do Ovidor. Como advogado, diziam-lhe uma competência um pouco duvidosa, o que, aliás, não obstava que ele ganhasse muito dinheiro. Mas, como já nota, força é confessá-lo, não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.


Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente. Orço pelos 40. E durante muito tempo não deu outra resposta.


Os seus conterrâneos de academia atribuíam-lhe 50, bem puxados. As senhoras, a essas não lhe davam mais que 35. Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro.


Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amanto oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem beleza. O indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco e fosse aplaudida e festejada pelo público.


Não era o amor, era a vaidade que o conduzia a nauseabunda citera dos bastidores. Essas ligações depressa se desfaziam. Duravam enquanto durava o brilho da estrela.


Desde que esta começasse a ofuscar-se, elas estavam por teios para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso, muito mais generoso que inteligente, nunca ficava mal com um astro caído. Algumas vezes, o rompimento era provocado por elas, pelos demais espírito, que facilmente se enfadavam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa e tão vaidoso com suas roupas.


No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista do autor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa. A Clorinda, que viera de Lisboa aprovoada pelas 100 trombetas do reclame e cuja estreia, num dos novos teatrinhos de O Preta, o público o esperava ansiosamente. Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou o delegado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia.


Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujos arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estufadores. Ela ficou encantadíssima e agradeceu-a com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante. Que belo tapete felpudo, que bonitos quadros, que papel escolhido, que delicioso divã, que magnífico espelho de face, onde o seu volto aeroso se refletia três vezes por inteiro, e que profusão de perfumarias, e que precioso serviço de toalete.


Nada faltava também a sobromazinha de maquilhagem, ricamente iluminada por dois bicos de gás. O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos. Não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários a um camarim de uma atriz que se respeita.


O arsenal estava completo. De lá a nada, houve o sumo. Dá licença.


E o diretor de cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada. Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira. A estrela não conteve um gesto de despeito.


O diretor de cena compreendeu e saiu imediatamente para não entrar em explicações. É doente? Perguntou Clorinda à costureira. Não, senhora.


Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa. Clorinda trocou o olhar com o advogado, e este disse-lhe, refastelando-se no divã, Ma chère, il faut se contendre de cette habilleuse.


Nous ne sommes pas en Europe. Ele impingiu a frase em francês para que não entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que, aliás, não o impediu de responder. Oui.


Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás e começou a pintar-se, dizendo, Vamos a isto. E dirigimos à costureira. Sente-se, porque está de pé.


Pobre mulher sentou-se a medo, com o precioso de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita. Sabe como disseram bonitas coisas a seu respeito? Perguntou a atriz ao advogado, olhando pelo espelho. De veras? Oh, como parece, você tem sido um gajo.


O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade de dentro como uma grande cruz. Com quem, então, a sua especialidade são as atrizes? Sou doido pelo teatro.


E há quanto tempo dura essa doidice? Há muito tempo. Estou velho, bem bê. Orso pelos 40.


Ninguém derá mais de 35. São os seus olhos. Qual foi a sua primeira paixão no teatro? Ah, isso.


O advogado levantou o braço e estalou os dedos. Isso é prejo histórico. Perde-se na noite dos tempos.


Como se chamava essa colega? Chamava-se Marcelina. Que fim levou? Ele encolheu os ombros. Sei lá.


Provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem gaiolados.


Ninguém lhes vê os cadáveres. Gostou dela? Foi talvez a paixão mais séria da minha vida. Nunca mais a procurou? Para quê? Tinha talento.


Talento? Não. Tinha habilidade. E depois de uma pausa? Tinha habilidade e era muito boa rapariga.


Brasileira? Sim. Representava ingénuas em trambalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia, eu já a tinha deixado, um dia, batearam-na por motivos que nada tinham a ver com a arte dramática.


Ela desgostou. A andou a morjando pelas províncias e, afinal, desapareceu. Requezca em peso.


Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos de Marcelina. Depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas macebias.


Clorinda, a costureira e o cabeleireiro, ouviam sem dizer palavra. Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se. Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me." — Até logo, disse o advogado. 


O seu penteado ficou esplêndido. Vou aplaudi-la. Boa chance! Deu-lhe um beijo na testa, para não desmanchar a pintura, e saiu do camarim, cuja porta à costureira discretamente fechou. 


Minutos depois, Clorinda estava completamente nua. 

— A senhora é muito perfeita de corpo, disse-lhe, não tão odilotório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda. — Acha? Perguntou destinosamente à atriz.


— Ah, eu também já fui perfeita de corpo, mas não tive juízo. Fiei-me-te mais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a de todos esses gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. 


Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria. 

— Ora esta, exclamou Clorinda, quem é você, mulher, para me falar assim? 

— Eu sou a Marcelina. 

A Marcelina, de Arturo Azevedo. 


Gravado por Ana Sofia Simão, Portugal, 2007.


Fim

Fonte: https://ia804609.us.archive.org/1/items/contos_brasileiros_0807_librivox/contos_brasileiros_03.mp3

(Transcrito por TurboScribe.ai)